Libya: Illegalities of Humanitarian Intervention

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Especialistas divergem sobre a legalidade da intervenção dos EUA e “aliados” na Líbia, sem, porém, sequer chegarem ao fundo da questão, que está além das ações do ditador (até então “presidente” para as potências ocidentais e para a mídia), mas recai sobre a hipocrisia internacional em selecionar a dedo as violações de direitos humanos que lhes interessa punir e criticar.

Paralelos Internacionais?

Uma das razões pela qual as Nações Unidas, através de seu conselho de Segurança, permitiram e apoiaram a intervenção na Líbia está na crise humanitária e na possibilidade de uma resposta armada do governo Líbio “desproporcional” e com exemplar violência contra os rebeldes.

O perigo futuro de uma resposta Líbia (futuro, não imediato) motivou a intervenção. A tentativa de evitar uma crise humanitária que poderia, então, fazer necessária uma ação da ONU para proteger os civis.

O problema em si não se encontra nesta futurologia e na suposta boa vontade da dita comunidade internacional em evitar uma crise humanitária, mas na seletividade desta boa vontade, desta preocupação em defender populações civis de seus ditadores.

Crises humanitárias acontecem todos os dias, sem que nenhuma potência ocidental se prontifique a intervir. A mais recente guerra de Israel contra o Líbano ou mesmo contra Gaza custou a vida de milhares de pessoas, não contou com o apoio de nenhum organismo internacional (ONU nem pensar) e não foi tampouco condenado pelos mesmos países que, hoje, demonstram tanta preocupação com os civis líbios.

Ao mesmo tempo em que ocorre a invasão sobre a Líbia, forças da Arábia Saudita invadem o vizinho Bahrein, mas ao invés da proteção de civis, o objetivo é o de garantir a sobrevivência do regime e protegê-lo da população raivosa. O Bahrein é aliado estratégico dos EUA e do “ocidente” na região. A Líbia, governada ha 40 anos por Khadafi, é inconstante, tende a rompantes de nacionalismo, apoiou o terrorismo internacional de esquerda e hoje é um aliado incômodo da Europa e dos EUA.

Não é preciso ir muito longe para entender que as motivações “humanitárias” na Líbia não se aplicam a países aliados, como o Bahrein, a Arábia Saudita ou Israel.

Intervenção e Guerra Civil

O conflito entre o governo Khadafi e os rebeldes, no início, se desenhava como uma guerra civil e, como tal, não cabia a intervenção de potências estrangeiras.

Conflitos internos entre grupos beligerantes não são passíveis de intervenção, devem ser resolvidos internamente, especialmente quando as potências já haviam escolhido que lado tomar, ao invés de, se as razões fossem mesmo humanitárias, apenas buscar a proteção de civis e no máximo equilibrar o conflito, garantindo o respeito à leis mínimas de guerra.

A noção de “intervenção humanitária”, em si, é um contra-senso. Não só por uma intervenção necessariamente levar à morte centenas e milhares de civis, além de destruir boa parte da infra-estrutura de um país, mas também por esta responder apenas a interesses econômicos dos invasores, interessados em se apossar das riquezas do país ou de azeitar sua indústria bélica.

A este último, o pensador marxista Istvan Meszarós deu o nome de Crescimento Canceroso, quando o capitalismo precisa de uma guerra para fazer a economia voltar aos eixos. É preciso não só investir na economia de guerra (indústria bélica e todo o setor que dele depende), mas também aquecer a economia numa posterior reconstrução do país arrasado pelos ataques.

É uma política de ganhos exclusivos para as potências invasoras, em que o país atacado serve como laboratório e ficar a mercê de interesses estrangeiros.

Não se trata de defender Khadafi, mas de denunciar as intenções por detrás da intervenção.

Precedente

Ao intervir na Líbia, os EUA garantem que, ao menos, terão algum papel na transição e podem ditar algumas regras. Com o país destruído, com a infra-estrutura prejudicada, os EUA surgiriam rapidamente como fonte de financiamento e apoio ao país necessitando de investimentos e rumo.

O petróleo viria como bônus.

A intenção dos EUA era a de intervir de qualquer maneira, e já existia um precedente: o Kosovo.

Durante o conflito do Kosovo com a Sérvia os EUA intervieram ilegalmente, junto com a OTAN, para defender o lado Kosovar. A ONU foi forçada a fingir que não via nada e a apoiar posteriormente, constrangida, se responsabilizando pela pacificação posterior e pelo processo de reconstrução do país.

A ilegalidade ficou patente com a falta de reconhecimento posterior por parte mesmo de tradicionais aliados dos EUA, como a Espanha – temerosa de que o reconhecimento pudesse incitar ainda mais o nacionalismo Basco e Catalão (e em menor parte, o Galego), que constantemente ameaçam a unidade do país.

A Ilegalidade da Resolução 1973 e a no-fly zone

Em 17 de março foi aprovada no Conselho de Segurança a Resolução 1973, que aprofundava o embargo econômico e de armas à Líbia e introduzia duas novidades:

A imposição de uma no-fly zone (área de exclusão aérea) e a necessidade por parte dos países membros da ONU de garantir a proteção aos civis, a todo custo. Uma no-fly zone significa uma área em que nenhum avião pode deixar o solo sem a permissão das Nações Unidas, impedindo desta forma ataques com aviões e bombardeios contra os rebeldes e alvos civis no leste da Líbia, região não mais sob controle governamental.

A Resolução 1973 foi aprovada por 10 a 0, com 5 abstenções, deixa clara a permissão aos Estados-membro da ONU não só de proibir o vôo de qualquer aeronave líbia, mas também pode também ser interpretada como permissão para o bombardeio de aeroportos e de infra-estrutura usada para guardar aviões ou pistas usadas para pouso e decolagem.

A resolução, em momento algum, permite às forças dos EUA e aliados atacar palácios de Khadafi ou buscar derrubá-lo, assim como não permite o bombardeio de caminhões, carros e tanques militares em trânsito em qualquer parte da Líbia.

Os ataques “seletivos” que EUA e aliados vem fazendo contra instalações militares sem qualquer relação com a imposição de uma no-fly zone são, enfim, totalmente ilegais. Assim como são os ataques com o objetivo de derrubar Khadafi ou de atacá-lo diretamente.

A intenção da resolução é clara, a de impedir a morte de civis e a de tentar equilibrar o conflito, mas não dá qualquer permissão ao “ocidente” de impor um resultado a este.

Havia a certeza de que os EUA iriam intervir de uma forma ou de outra, logo, melhor que fosse sob os auspícios e limites da ONU, mas, mais uma vez, a ONU demonstrou sua inutilidade e em momento algum nem o secretário geral, nem qualquer outro oficial, repudiou a ilegalidade dos ataques dos EUA contra alvos sem qualquer relação com a resolução 1973.

Resolução a fundo

Resolução aprovada e regras mínimas assinaladas, iniciou-se a intervenção. De início, vimos o uso desproporcional de mísseis contra alvos que, nem de longe, foram os designados pela resolução. Instalações militares aleatórias e mesmo um prédio do complexo onde vive Khadafi foram alvos de bombardeios.

É possível interpretar que, por “defesa da vida de civis”, importante ponto da Resolução 1973, entenda-se tomar medidas para garantir sua segurança, mesmo militares, logo, seria legítimo o bombardeio de tropas em vias de atacar áreas civis. Mas isto de forma alguma justifica o ataque a forças militares em Trípole ou em áreas que estão sendo defendidas contra os rebeldes, áreas sob controle governamental e distantes das reais zonas de conflito.

A diferença pode parecer tênue, mas militarmente faz muito sentido. Uma coisa é o ataque justificado a tropas no leste do país, região sob controle ou maior controle rebelde, que se preparam para atacar civis ou mesmo tropas rebeldes, outra bem diferente é atacar tropas estacionadas no oeste do país, região majoritariamente sob controle de Khadafi, logo, tropas que visam defendem o governo.

Não a toa, a China, através de sua imprensa oficial, demonstrou mal estar com os ataques, assim como o Brasil criticou a intervenção e a Rússia não se furtou em criticar as ações.

A decisão de depor Khadafi não está nas mãos da coalizão que agora intervém na Líbia, logo, a destruição de toda a estrutura militar e da infra-estrutura Líbia não está na ordem do dia, ou ao menos não deveria. A destruição das defesas do governo significariam abrir caminho para os rebeldes tomarem o poder, isto se os EUA não tomarem a iniciativa de, eles próprios, derrubarem Khadafi – intenção declarada pelo ministro da defesa inglês em declaração À mídia internacional.

Segundo a resolução, os aliados devem “tomar todas as medidas necessárias (…) para proteger civis e áreas povoadas por civis sob ameaça de ataque”. De fato, é extremamente amplo, mas à medida em que se analisa coletivamente todos os demais pontos da resolução, podemos pintar um quadro completo em que a mudança de regime não está na ordem do dia e que, por mera observação, entendemos que matar Khadafi teria exatamente o resultado não-previsto na resolução.

Se por um lado, pode-se interpretar que, a fim de evitar a morte de civis, Khadafi deva ser eliminado – afinal, é o alegado responsável -, por outro não há qualquer permissão para que a decisão de mudar o regime seja tomado por qualquer um a não ser o povo líbio.

Aliás, vale ainda lembrar que não cabe ao Presidente Obama, mas ao Congresso dos EUA aprovar ações militares, o que, desde o início, coloca a intervenção na ilegalidade. Deputados Democratas contra a intervenção consideram até pedir o impeachment de Obama.

Como se vê, a intervenção na Líbia, mesmo com o respaldo da ONU, é um show de erros e ilegalidade, de todos os lados e em todas as direções.

Raphael Tsavkko Garcia é bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestrando em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero.

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