O mito e o troféu
Osama está morto. Viva Obama! O acerto de contas foi americano. O mundo se sentiu vingado num primeiro momento. Todos lembramos o que fazíamos quando, há quase dez anos, um atentado bárbaro matou cerca de 3 mil inocentes nas Torres Gêmeas. Não choramos agora pelo terrorista. Mas o que aconteceu na semana passada não enobrece a democracia. A balbúrdia de contradições oficiais reforça o mito Osama e adia seu sepultamento no inconsciente coletivo.
“Acho ótimo matá-lo. Quer prender para interrogar o quê? E os 3 mil que ele mandou morrer?”, disse nosso poeta Ferreira Gullar. Essa foi a reação normal. Não só dos ocidentais. Muçulmanos, entrevistados no mundo inteiro, se disseram aliviados com o “desaparecimento” de Osama bin Laden. Por um motivo simples: o terror e o fanatismo distorcem o islã. Osama era o símbolo-mor de uma face cruel e minoritária do islamismo, que prega o sacrifício de civis inocentes e o suicídio de jovens mártires como tática de poder na guerra santa. Carismático, filho de burgueses, Osama incomodava por comandar a Al-Qaeda nas sombras.
Barack Obama era candidato quando prometeu encontrar, prender ou matar o inimigo que humilhava seu país. Cumpriu a promessa. Sua popularidade deu um salto. Ele deixou de ser considerado um líder tíbio, relutante. O povo americano é nacionalista, protecionista e imperialista. Gosta de demonstrações de força, idolatra a bandeira. Pode ser uma generalização – mas ela define a média da população nativa e dos imigrantes naturalizados. Obama foi eleito por uma maré de decepção econômica. Conquistou jovens e velhos, idealistas e desiludidos, de ideologias diversas. Seu ótimo slogan “Yes, we can” era vago o bastante para ser completado da maneira mais conveniente a cada um. Sim, nós podemos tudo?
Podemos entrar em outro país para capturar um terrorista sem autorização local? Talvez sim, em raras exceções. Violar essa regra do Direito Internacional parece mais aceitável do que abrigar um homicida do porte de Osama bin Laden. Sua fortaleza murada ficava em Abbottabad, uma cidade de classe média habitada por famílias de militares, a apenas 56 quilômetros da capital paquistanesa. Se um país – no caso o Paquistão – posa de aliado, mas é suspeito de proteger um terrorista que prega assassinatos em massa, seria crime ou cautela não alertar o governo de Islamabad?
Podemos torturar presos para chegar ao terrorista? Podemos executar o terrorista, mesmo que ele não ameace com uma arma? Podemos jogar o corpo ao mar sem sepultá-lo? Moralmente, não. Podemos censurar a divulgação da foto do morto? Eticamente, não. Podemos confundir a opinião pública com uma mentira diferente a cada dia? Claro que não. Podemos fingir que o mundo estará mais seguro e melhor a partir de agora? Ninguém acredita nisso. Podemos dizer que “a justiça foi feita”? Sim, mas com desvios. As imagens de Osama morto são de interesse público. A censura provoca mais danos que benefícios. E a comunicação do Pentágono precisa ser disciplinada – porque nem eles mesmos se entendem sobre o que realmente aconteceu.
Entende-se a preocupação dos Estados Unidos em não acirrar a ira de fanáticos ao exibir Osama morto. Não se entende por que os exímios atiradores da tropa secreta da Marinha, conhecida como Seal Team 6, precisaram desfigurar seu rosto a curta distância – ele poderia continuar um cadáver apresentável, não? Entende-se que tenham preferido matá-lo a prendê-lo para evitar que, detrás das grades, continuasse a exercer uma liderança maligna. Entende-se que era melhor matar sem plateia do que transformar em espetáculo a execução pública de um Osama condenado à morte pela Justiça. Entende-se que era melhor não criar, com seu túmulo, um local de culto, peregrinação e manifestações de ódio aos dois lados.
“Osama não é um troféu. Não queremos transformá-lo num mito”, afirmou Obama, ao justificar a morte sem corpo. Osama bin Laden é um mito e um troféu, não importa o que se diga agora. E seu desaparecimento no mar, sem fotos, cercado de sigilo e contradições, só reforça a dupla aura que Obama deseja evitar.
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