Já presidente, Biden convoca os norte-americanos a “começar do zero”
Mandatário destacou em seu discurso a importância de sua vice, Kamala Harris: “Hoje fazemos o juramento da primeira mulher na história dos EUA a ser eleita para um cargo no Executivo federal. Não me diga que as coisas não podem mudar”
Os Estados Unidos disseram adeus à era de Donald Trump e iniciaram uma nova etapa com a chegada de Joe Biden à Casa Branca. O democrata se tornou presidente nesta quarta-feira em frente ao mesmo Capitólio invadido apenas duas semanas atrás e clamou pela “unidade” dos cidadãos num momento especialmente conturbado da história. Em uma cerimônia emocionante, mas atípica, ofuscada pela pandemia e pelas excepcionais medidas de segurança, Biden condenou a violência, elogiou a vitória da democracia e convocou a população a “começar do zero”. Foi um discurso catártico, num dia para a história. Kamala Harris é desde hoje a primeira mulher a ocupar a vice-presidência do país mais poderoso do mundo.
Pouco antes das 12h (14h em Brasília), com a mão sobre a mesma Bíblia com a qual prestou juramento como senador em 1973, Joseph Robinette Biden Jr. (Scranton, Pensilvânia, 78 anos) tomou posse no cargo com o qual sempre sonhou. Já é o 46º presidente dos Estados Unidos, o segundo católico da história (depois de John Fitzgerald Kennedy), o mais idoso a assumir o cargo, um político que um ano atrás era tido como derrotado. É o homem que conseguiu unir os democratas contra Trump e que terá a missão de resgatar a nação de um momento muito sombrio.
“Aprendemos que a democracia é um bem precioso e frágil, mas a democracia venceu. Este é o dia da América, é o dia da democracia”, afirmou o novo presidente em um pronunciamento de 25 minutos, cujo tom foi dado pelo grave momento que o país vive. Abordou apenas de passagem as políticas, os planos e os programas que pretende implementar, não mencionou Trump e preferiu centrar sua mensagem nos valores, na recuperação de um espírito americano que define como de unidade e luta.
O presidente também homenageou a sua vice e a luta das mulheres sufragistas no país. “Estamos aqui, onde há 108 anos, em outra posse, milhares de manifestantes tentaram impedir mulheres corajosas de marcharem pelo direito ao voto. E hoje fazemos o juramento da primeira mulher na história dos Estados Unidos a ser eleita para um cargo no Executivo federal, a vice-presidente Kamala Harris. Não me diga que as coisas não podem mudar”
Biden, a quem milhões de norte-americanos, instigados por Trump, acusam de ter roubado as eleições, insistiu na urgência “da verdade”. Esta insistência, assim como a ideia geral do discurso —deixar para trás um tempo de guerra e trauma—, transmitia certo ar de esperança, mas sobretudo recordava as palavras de Gerald Ford quando assumiu a presidência em 1974, após a renúncia de Richard Nixon por causa do escândalo Watergate: “Compatriotas, nosso pesadelo nacional acabou”.
Os Estados Unidos são um país fundado na rebelião contra a monarquia, mas com ritos presidenciais próprios da realeza, e o dia da posse presidencial é um dos marcos de maior afirmação, uma cerimônia grandiloquente, de ar triunfal e otimista. Neste ano, transcorreu ofuscada pela pandemia, que ceifou 400.000 vidas no país no último ano, e pela polarização política, que obrigou a fechar a capital e se cristalizou com a ausência do presidente em fim de mandato. Em lugar de centenas de milhares de cidadãos que costumam acompanhar o ato ao vivo no National Mall, a grande esplanada verde amanheceu com um mar de bandeiras em homenagem aos que morreram, além de cerca de 25.000 soldados da Guarda Nacional protegendo as ruas.
Com o fim do mandato de Trump, os Estados Unidos transmitem a mensagem de que os movimentos populistas que cresceram nos últimos anos em todo o mundo começam a se desgastar. Com a violenta invasão do Congresso há apenas duas semanas, incitado pelo próprio mandatário e suas mentiras, envia também o sinal de que essa divisão permanece. Trump, rompendo uma tradição mais do que centenária, evitou acompanhar seu sucessor e partiu logo cedo da cidade, orgulhoso, ainda na qualidade de presidente, para voar pela última vez no avião presidencial Air Force One e aterrissar em seu refúgio da Flórida.
Foi, contudo, um dia de esperança para pelo menos mais da metade deste país, exausto após quatro anos de crispação, e para o resto do mundo, especialmente aliados tradicionais dos Estados Unidos aos quais o vice-presidente da era Obama prometeu o retorno da grande potência ao palco internacional, após a guinada nacionalista impulsionada por seu antecessor republicano. O novo Governo herda um país em uma recessão inédita em 70 anos e com níveis de dívida à altura da Segunda Guerra Mundial.
“A todos os que não me apoiaram, deixe-me dizer-lhes isso: escutem o que tenho a dizer conforme avançamos e, se de todo modo estão em desacordo, isso é da democracia, isso é os Estados Unidos, afirmou. “Comecemos novamente, todos nós, a escutarmos uns aos outros”, insistiu. Biden prometeu “liderar pelo exemplo”, o que ficou claro pelo uso de máscaras pelo mandatário durante toda a cerimônia e pelo tom conciliatório adotado no discurso.
Passaram-se quatro anos duros na vida deste país, limites foram detonados, os arcabouços das instituições e da democracia foram testados. Os cidadãos viram seu presidente se confraternizar com os piores ditadores do globo, lançar pacotes de papel higiênico às vítimas de um furacão e falar da “boa gente” que havia entre os neonazistas que marcharam em Charlottesville em 2017. Com a pandemia, começou a queda de Trump aos infernos. Persistiu na negação, primeiro, e depois na extravagância. Ao perder as eleições, lançou o desafio final ao sistema, tratou de reverter o resultado à base de mentiras. Mais de metade dos eleitores republicanos continua acreditando nelas. Nesta quarta-feira, Trump já se encontra na Flórida como ex-presidente, e Biden, na Casa Branca. Os Estados Unidos começam agora o duro caminho rumo à reconciliação.
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