Toda eleição presidencial tem ingredientes de circunstância, dados pela conjuntura, e de substância, ligados aos grandes problemas de um país e a distintas maneiras de encará-los e encaminhá-los. Há momentos em que predominam os ingredientes de substância. Foi o caso da eleição, no âmago da Grande Depressão, de Franklin Roosevelt em 1932. Há momentos em que os ingredientes de substância ficam em surdina no processo eleitoral e prevalecem os de circunstância. Foi o que aconteceu na primeira eleição presidencial de George W. Bush, num contexto internacional favorecedor do predomínio dos EUA no mundo.
A atual disputa nos EUA, na qual se confrontam o republicano John McCain e o democrata Barack Obama, tem como pano de fundo o término do segundo mandato de Bush e o descrédito da sua administração. São também ingredientes da atual eleição as diferenças do percurso de vida dos dois candidatos e dos seus companheiros de chapa. No entanto, muito mais que os ingredientes de circunstância, o que está em jogo nesta eleição são os de substância. Com efeito, a profundidade da crise econômico-financeira fez aflorar as insuficiências da gestão do país e os limites internos e externos do poderio norte-americano. É por isso que ambos os candidatos falam em mudança.
Nos EUA a mudança tem uma dimensão internacional num duplo sentido. Afetará o mundo, em função da relevância dos EUA na dinâmica do funcionamento da vida internacional. Por outro lado, e em contrapartida, nenhum dos grandes temas da agenda da campanha – economia, segurança, energia, meio ambiente, imigração – poderá ser encaminhado pelos EUA sem uma ação concertada com outros países. É por esse motivo que, por obra das interdependências, a pauta substantiva do debate eleitoral norte-americano coincide em larga medida com os problemas presentes na agenda internacional.
O encaminhamento da crise econômico-financeira vai muito além da capacidade de ação interna dos EUA. Isso não quer dizer que não exista espaço para atuação do próximo governo em matéria de responsabilidade no manejo das contas da economia norte-americana. Daí a discussão, que permeia a campanha, sobre a política fiscal e a distribuição do seu ônus, sobre a direção dos gastos públicos, inclusive a da abrangência da cobertura da seguridade social, e sobre o funcionamento do mercado, que foi sendo, na presidência Bush, desregulamentado e inadequadamente fiscalizado, como a crise da bolha imobiliária evidenciou. Observo que o potencial de recessão realçará o problema da pobreza e o da criação de empregos nos EUA, que se agravaram na presidência Bush, complicando os problemas do temário norte-americano de imigração. Isso dificultará o relacionamento dos EUA com o México e com a América Central e, certamente, estimulará a propensão ao protecionismo, com impacto nas negociações do comércio internacional.
No mundo globalizado em que vivemos, a crise transcende os EUA. Transformou-se numa crise mundial de liquidez, de solvência, em função de “créditos podres”, e de confiança no sistema financeiro, por obra do colapso das engenharias financeiras lastreadas em derivativos. Está gerando tensões internacionais significativas. Só poderá ser amainada mediante alto grau de cooperação internacional e exigirá empenho multilateral na reformulação da arquitetura regulatória global.
Segurança internacional, na administração Bush, teve como prioridade a intervenção no Iraque e o combate ao terrorismo – 150 mil soldados norte-americanos estão no Iraque, combatendo há mais tempo do que as tropas dos EUA na 2ª Guerra Mundial. Por isso, o tema Iraque está presente com força no debate eleitoral. A posição norte-americana no mundo está deteriorada e vem contribuindo para a radicalização do mundo muçulmano e para a onda de antiocidentalismo. O combate ao terrorismo, com flagrante desrespeito aos direitos humanos, vem comprometendo a posição moral dos EUA no trato das ambições normativas da agenda internacional. Por isso a prisão de Guantánamo está muito presente no debate eleitoral.
O sucessor do presidente Bush herdará, com estes passivos, a realidade dos recursos limitados e da diminuição do que pode ser alcançado pela ação unilateral dos EUA. Para enfrentar estes e outros problemas que se vêm avolumando na agenda da paz e da guerra o próximo presidente terá de buscar, como na área econômica, a cooperação de outros Estados para criar novos consensos que permitam condições favorecedoras da governança internacional da segurança coletiva.
Meio ambiente, mudança climática, matriz energética são temas do debate eleitoral norte-americano. Esta é uma agenda de inequívoco alcance global, que requer uma difícil cooperação internacional, pois passa por medidas que transcendem as soberanias. Também neste campo, o desafio unilateralismo/multilateralismo estará na ordem do dia do sucessor do presidente Bush.
Em síntese, o sucessor do presidente Bush tem pela frente o desafio de exercer uma liderança que associe tanto inovação e transformação quanto pacificação e harmonização. Isto vale para o plano interno e para o plano externo, dada a interpenetração dos dois planos que a globalização enseja e que promove a expressiva coincidência entre a agenda nacional e a internacional dos EUA. Por isso o próximo presidente dos EUA terá ou não sucesso no encaminhamento dos temas substantivos do seu país se lograr superar o impacto do paroquialismo eleitoral e das intolerâncias da sua “guerra cultural”, lidando com o repto da convivência coletiva em escala planetária. Isto passa pela competência em captar interesses comuns e compartilháveis, pela gestão das desigualdades do poder e pela sabedoria na mediação da diversidade cultural e do conflito de valores.
Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC
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