Unreliable Securities

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Já houve um tempo em que as acções eram arriscadas e os títulos colateralizados eram seguros. Esse tempo acabou e o colapso do mercado norte-americano de titularização dos créditos hipotecários demonstrou-o bem. Durante anos, centenas de milhar de…

Já houve um tempo em que as acções eram arriscadas e os títulos colateralizados eram seguros. Esse tempo acabou e o colapso do mercado norte-americano de titularização dos créditos hipotecários demonstrou-o bem.

Durante anos, centenas de milhar de milhões de novos títulos endossados a hipotecas (MBS: Mortgage-Backed Securities) e as decorrentes obrigações de dívida colateralizada (CDO: Collateralized Debt Obligations) foram vendidos em todo o mundo para compensar a falta de poupança nos Estados Unidos e para financiar o investimento imobiliário norte-americano. Agora, praticamente todo o mercado de novas emissões desses títulos – tudo menos 3% do volume original do mercado – desapareceu completamente.

Para compensar o desaparecimento deste mercado, e o simultâneo desaparecimento dos empréstimos bancários sem garantia aos proprietários norte-americanos de casas, 95% das hipotecas nos EUA são hoje canalizadas através de instituições estatais como a Fannie Mae, Freddie Mac e Ginnie Mae. Tal como já houve um tempo em que os títulos colateralizados eram seguros, também houve um tempo em que as economias onde havia demasiada intervenção do Estado eram chamadas de socialistas.

A maior parte destes títulos privados era vendida a países exportadores de petróleo e à Europa, em particular à Alemanha, Reino Unido, países do Benelux, Suíça e Irlanda. A China e o Japão abstiveram-se de comprar esse tipo de valores.

Em resultado disso, os bancos europeus foram penalizados pelas maciças amortizações dos títulos tóxicos norte-americanos. De acordo com o Fundo Monetário Internacional, mais de 50% dos capitais próprios detidos antes da crise pelos sistemas bancários nacionais da Europa Ocidental, ou seja, 1,6 biliões de dólares, terão desaparecido até ao final de 2010, com a parte de leão das perdas a ser de origem norte-americana. Assim, a transferência de recursos da Europa para os Estados Unidos é similar, em dimensão, ao total que os EUA já gastaram nas guerras no Iraque (750 mil milhões de dólares) e no Afeganistão (300 mil milhões de dólares).

Os norte-americanos agora dizem “caveat emptor” [expressão em latim que significa “o comprador que se cuide”] : os europeus deveriam ter conhecimento do tipo de risco destes títulos quando os compraram. Mas mesmo as CDO com um “rating” AAA atribuído pelas agências de notação financeira norte-americanas, que as consideravam tão seguras quanto as Obrigações do Tesouro, valem agora apenas um terço do seu valor nominal. Os europeus confiaram num sistema que não era digno de confiança.

Há dois anos, Ben Bernanke, presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos, defendia que os estrangeiros estavam a comprar títulos norte-americanos porque confiavam no sistema de supervisão financeira da América e queriam participar no dinamismo da sua economia. Agora sabemos que isso era propaganda com o objectivo de manter o capital estrangeiro a fluir, de forma a que as famílias norte-americanas pudessem continuar a financiar os seus estilos de vida. A propaganda foi bem sucedida. Mesmo em 2008, os Estados Unidos conseguiram atrair fluxos líquidos de capital no valor de 808 mil milhões de dólares. As estatísticas preliminares apontam para que este número tenha agora caído para metade.

Durante anos, os Estados Unidos tiveram à sua disposição o tão falado “privilégio do retorno”. Obtinham uma taxa de retorno sobre os seus activos estrangeiros quase duas vezes superior à taxa que pagavam aos estrangeiros pelos seus activos norte-americanos. Uma das hipóteses é que isto reflectia o facto de os banqueiros de investimento dos Estados Unidos fazerem melhores escolhas. Uma outra é que as agências norte-americanas de “rating” contribuíram para iludir o mundo ao atribuírem notações de triplo A aos seus clientes norte-americanos, ao passo que baixavam agressivamente os “ratings” dos tomadores de empréstimos estrangeiros.

Isto permitiu que os bancos dos EUA beneficiassem, ao oferecerem baixas taxas de retorno às entidades de concessão de crédito estrangeiras, ao mesmo tempo que obrigavam os tomadores de empréstimos estrangeiros a aceitarem taxas de juro mais elevadas.

Com efeito, é evidente que os “ratings” estavam ridiculamente distorcidos. Ao passo que uma grande agência norte-americana de notação financeira atribuía nos últimos anos às empresas europeias, em média, apenas um triplo B, as CDO baseados em MBS facilmente obtinham notações de triplo A. Segundo o Fundo Monetário Internacional, 80% das CDO estavam nesta categoria. E de acordo com um documento de trabalho do National Bureau of Economic Research (NBER), da autoria de Efraim Benmelech e Jennifer Dlugosz, 70% das CDO recebiam uma notação “AAA”, mesmo que os MBS a partir dos quais eram criados apenas tivessem um “rating” médio de “B+”, o que os teria tornado invendáveis no mercado. Assim, os autores deste trabalho baptizaram este processo de criação das CDO de “alquimia”, que é a arte de transformar chumbo em ouro.

O principal problema com os títulos endossados a créditos hipotecários é que carecem de recursos. Uma obrigação de dívida colateralizada é uma reivindicação contra uma cadeia de reivindicações cujo último elo é o proprietário imobiliário norte-americano. Nenhuma das instituições financeiras que estruturam as referidas CDO é directamente responsável pelos reembolsos que prometem; nem tão pouco o são os bancos e os intermediários que criam as hipotecas ou os MBS baseados nessas hipotecas.

Apenas os proprietários das casas são responsáveis. No entanto, o titular de uma CDO ou de um MBS não conseguiria levar estes proprietários a tribunal. E mesmo que conseguisse, os proprietários poderiam simplesmente devolver as chaves das casas, uma vez que também eles beneficiam da protecção de carência de recursos. Uma vez que os preços das casas desceram e um terço dos empréstimos hipotecários dos EUA foram por água abaixo – ou seja, o valor de mercado das casas caiu para níveis inferiores ao montante do empréstimo – três milhões de proprietários imobiliários norte-americanos perderam as suas casas, ao não conseguirem pagar as suas prestações, fazendo assim com que as CDO e os MBS se tornassem conchas vazias.

O problema foi exacerbado por práticas de avaliação fraudulentas – ou, pelo menos, duvidosas. A título de exemplo, muitos proprietários de bens imobiliários assinaram contratos com os construtores para fingirem que o valor das suas casas era maior, recebendo assim empréstimos mais elevados, e as comissões das agências de mediação eram acrescentadas às hipotecas e aos valores declarados das casas. As pessoas com baixos rendimentos, das quais não se podia esperar que conseguissem amortizar integralmente os seus empréstimos, recebiam os chamados créditos NINJA (sigla em inglês para ‘No income, no job, no assets’). Esses comportamentos imprudentes e irresponsáveis eram correntes.

Os Estados Unidos terão de reinventar o seu sistema de financiamento de hipotecas para poderem escapar à armadilha socialista em que caíram. Uma reforma elementar seria obrigar os bancos a reterem nos seus balanços uma determinada proporção dos títulos que emitem. Dessa forma, assumiriam parte das perdas se os títulos não fossem honrados – e, uma vez mais, isso constituiria um poderoso incentivo para se manterem rigorosos padrões de concessão de empréstimos hipotecários.

Uma solução ainda melhor seria adoptar o método europeu: libertarem-se dos empréstimos protegidos pela carência de recursos e desenvolverem um sistema financeiro baseado em obrigações garantidas, tal como as “Pfandbrief” alemãs. Se uma “Pfandbrief” não for honrada, é possível levar a tribunal o banco emitente. E se o banco for à falência, o titular da obrigação garantida pode reivindicar o seu dinheiro directamente junto do proprietário da casa, que não pode escapar ao pagamento através da simples devolução das chaves de casa. E se o proprietário desse bem imobiliário for à falência, a casa pode ser vendida para saldar a dívida.

Desde a sua criação na Prússia, em 1769, no reinado de Frederico, o Grande, nunca uma única “Pfandbrief” entrou em incumprimento. Ao contrário de todo o lixo financeiro proveniente dos Estados Unidos nos últimos anos, as obrigações garantidas oferecem uma segurança digna desse nome.

Hans-Werner Sinn é professor de Economia e Finanças Públicas na Universidade de Munique e presidente do Instituto Ifo.

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