Passam sete anos sobre a data da invasão do Iraque e o bombardeamento de Bagdade em directo e a cores. Os países envolvidos na “libertação” estão envolvidos com os índices dos mercados, o preço do dólar e do petróleo, as recessões, o desemprego. E os inimigos do costume. O Iraque deixou de ser notícia, deixou de ter correspondentes embebidos e bem bebidos. Do Iraque, para consumo, resta a Comissão que humilhou Tony Blair e o obrigou a explicar-se sobre as armas de destruição maciça, os relatórios secretos e a eliminação de Saddam na guerra não sancionada pelas Nações Unidas. E resta a eleição de Obama, uma das consequências positivas de uma guerra perdida.
Convém acentuar a palavra perdida. Porque, ensinam os manuais e os mestres da arte, as guerras perdem-se e ganham-se e quem as ganha fica com direito à versão final da História. Não em Hollywood. E não na guerra do Iraque, perdida sem vencedores. O quotidiano da guerra, com o seu cortejo de crueldade e violência, de ódio esterilizado e de agressão quimicamente pura, de vítimas silenciosas, de danos colaterais, de estropiados e refugiados, de valas comuns e de assassinados, dilui-se na big picture final, um filme de heróis e de cenários de grandeza em que a vida humana é uma estatística e os resultados são a marca da razão. A passagem do tempo absolve todos os crimes. O Iraque teve eleições, mas ninguém se interessa muito por quem ganhou ou perdeu, ou quantas bombas explodiram em quantos carros e mercados. Ninguém vaticina se o Iraque se divide ou não, se os sunitas estão ou não no poder, se o Governo governa; se o Iraque vai voltar algum dia a ser um país em vez de um aglomerado de tribos e credos armados.
Os especialistas estão preocupados com o Afeganistão. Quando falha um Vietname, essa grande medida da moralidade e da necessidade das guerras de libertação, arranja-se logo outro Vietname, e as esquerdas e direitas agarram-se ao osso favorito: eu sou contra se tu fores a favor. Quase todas as pessoas gostam de causas, não gostam de guerras. O Iraque é passado. O Iraque é pó e resíduo nas notícias, um flash de fumo e destroços calcinados com a mulher de negro a chorar ao lado. É um corredor de hospital cheio de homens que gritam e se arrepelam. É uma maca ensanguentada, uma criança morta no colo do pai, uma ferida aberta com ligaduras sujas. Nem os defensores da guerra põem a cabeça de fora a jurar que corre tudo bem e a democracia e o petróleo voltam a jorrar. Portugal também iria enriquecer na reconstrução do Iraque. Daí os Açores. Lembram-se?
Algumas pessoas não gostam de causas e gostam de guerras. Algumas dessas pessoas dão excelentes soldados, outras dão heróis. Algumas dão cadáveres. Para essas, as guerras são lugares de indiferença física e ideológica: não lhes interessa se representam o bem contra o mal, na clássica dicotomia americana, ou se a emoção deve ceder à razão. Algumas pessoas precisam de viver em estado de guerra. É o pretexto para diluir o tédio que a vida lhes inspira, diluir a small picture na big picture; a vidinha de todos os dias com o seu cortejo de iniquidades, o patrão despótico, o salário magro, a família confusa, o emprego mecânico e os imperativos do culto religioso e do dogma patriótico dissolvem-se no cenário maior onde a sua vontade conta. A guerra fornece uma medida de controlo. O controlo eufórico da vida e da morte.
Quando um país não está em guerra, algumas pessoas vivem em beligerância natural e empreendem guerrilhas diárias. Berram, apitam, maldizem, invadem os outros. Quando a grande guerra recruta e treina, disciplina e educa, algumas brilham de coragem e são exemplares do bom soldado: não penses, obedece. Algumas dessas pessoas, deixadas à solta, passam de heróis a cowboys e obrigam os outros a seguir o farejo do perigo. A guerra é tão ridícula como a vida, mas estas pessoas nunca leram sobre o “Valente Soldado Svejk” ou toparam o “Catch-22”.
O filme de Kathryn Bigelow é sobre uma destas pessoas e raramente um filme é sobre estas pessoas e é assim, neste modo íntimo e pausado, sem avaliações nem subtextos, sem deuses nem demónios. Não sei se me interessa que tenha sido uma mulher a realizar um dos melhores filmes de guerra, ou se este filme é, como disseram por aí, sobre hormonas e machos alfas. É um filme sobre o medo, sobre as partículas de suor do medo. Sobre o domínio do medo e a exaltação do medo. É um filme sobre a guerra invisível das vidas vulgares. É um filme sobre o universal som do silêncio antes da explosão. Bigelow sabe o que faz. Não filma john wayne, filma john doe. Filma o soldado desconhecido.
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