The “Betrayal” of Obama

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Li sem muita surpresa, a carta enviada pelo presidente Barack Obama ao colega brasileiro, na qual chancelava o plano proposto por Brasil e Turquia ainda na reunião do G-20. Em termos claros, ali está o apoio a uma tentativa nova de conciliação diplomática, usando dois players até então não envolvidos diretamente no conflito a ser solucionado. Não é algo novo em diplomacia. Em 1983 – me corrijam se a data estiver errada – o Vaticano obteve uma solução favorável na crise entre Chile e Argentina em torno da disputa pelo Canal de Beagle. A possibilidade de uma discussão mais profícua surge justamente quando os mediadores não estão associados a qualquer um dos lados em questão.

À luz dos fatos ocorridos, como podemos então interpretar a “traição” do presidente americano? Afinal, Lula “é o cara”, como ele mesmo dizia nos dias posteriores à sua posse. É preciso então olhar o que mais estaria em jogo caso Brasil e Turquia convencessem realmente o Irã a aceitar um termo que permitisse a continuidade de um programa nuclear minimamente monitorado. Em primeiro lugar, o quadro político interno nos EUA mudou e o presidente não tem mais a maioria no Congresso que tinha antes – um democrata morreu e seu substituto é um republicano. Isso significa estar mais vulnerável a pressões e críticas internas em um momento em que importantes programas econômicos e sociais estão sendo anunciados e dependem de negociação parlamentar.

Em segundo lugar, e derivando do primeiro, está o fato de que a liderança mundial americana, por um princípio político que percola a sociedade americana desde os Fonunding Fathers, não compreende qualquer processo político internacional no qual não tenha um papel de liderança. Tal percepção se cristalizou sobretudo após a II Guerra Mundial, no qual as forças militares e industriais americanas representaram efetivamente o turning point do conflito. Obama certamente sabia que Lula poderia avançar no diálogo pelo carisma pessoal do brasileiro, mas pode ter sido surpreendido pela eficiência real do que foi obtido nas negociações,

Em terceiro lugar, e acho que esse é um ponto relevante, está a possibilidade de que um acordo no qual os EUA não entram diretamente, a questão de petróleo e gás passa a ser estratégica. Fizemos uma matéria no JB mostrando que o Irã, detentor da segunda maior reserva de petróleo do planeta, precisa urgentemente de refinarias. E é fabricante das sondas que o Brasil acaba tendo de alugar ou comprar de outros parceiros. Além disso, a sociedade iraniana tem uma boa imagem do Brasil e de seus produtos. Um antigo embaixador do Brasil em Teerã me disse, certa vez, que o país persa é um mercado potencial muito bom para nós principalmente porque lá, embora se tenha plena consciência de que o Brasil tem relações fortes com a América, a imagem que se tem dos brasileiros é a de serem um povo que preza a sua independência acima de tudo.

Em quarto e último ponto está o lobby de Israel nos EUA. A crise do Irã é um xadrez complicado no tabuleiro de forças do Oriente Médio. Se formos olhar em termos de alianças regionais, o Irã passou a ser a única peça capaz de representar – o verbo é esse mesmo, representar – algum tipo de equilíbrio de forças no mundo árabe diante da poderosa e imutável aliança entre EUA e Israel. Um acordo obtido a revelia dos negociadores americanos, longe da influência e da lupa do poderosíssimo lobby judaico nos EUA, poderia ser uma forma de ameaça ao controle exigido pelas autoridades de Tel Aviv diante do discurso beligerante adotado por Mahmoud Ahmadinejad. Nada contra a ação brasileira, isso já se deixou claro: o problema de Israel é que é impossível aceitar um Irã que renega a Shoah (Holocausto) e a própria existência do país. Embora eu ache que esse discurso é mais uma ferramenta política de afirmação de Teerã ao resto dos muçulmanos – com profundas divisões internas – é compreensível que os israelenses não queiram pagar para ver.

O que fica desse episódio também é a elegância do governo brasileiro. Apesar da traição aberta e clara de Obama – cujo silêncio diante da truculência da secretária Hillary Clinton foi sintomático – Lula não expôs a carta que era o seu ás na manga para desmoralizar a atitude americana. Preferiu capitalizar a aparente derrota assumindo uma posição de independência diante das decisões americanas e das potências do conselho de segurança da ONU. A autoafirmação brasileira nesse episódio é talvez o maior momento da diplomacia nacional nas últimas décadas – só me lembro de embate similar quando o general Ernesto Geisel rompeu com Washington para assinar o acordo nuclear com a Alemanha em 1975. Independentemente de o acordo ser validado ou não, o Brasil entrou na história dessa vez como um protagonista capaz de entregar aquilo que promete, e que é suficientemente forte economicamente para desafiar uma liderança americana que hoje é muito mais do simbolismo dos próprios EUA do que algo real para o resto do mundo.

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