Guantanamo Never Existed?

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Guantánamo nunca existiu?

Continua a ser um lugar de excepção, debaixo do sol. Que só mostra o que quer mostrar. O PÚBLICO foi visitar a prisão e acompanha os julgamentos.

Quarta-feira, num tribunal em Guantanámo, um oficial com 20 anos de experiência no exército americano teve de responder à pergunta: “Qual é a sua opinião sobre o encerramento de Guantánamo?” O oficial, um homem calvo cuja identidade não foi revelada, não era uma testemunha, mas um membro potencial da comissão militar (equivalente ao júri nos tribunais civis) que vai ditar o veredicto de um cidadão canadiano detido aos 15 anos no Afeganistão e trazido para Guantánamo há oito. A pergunta foi feita pela acusação, que representa o Governo americano no caso “Estados Unidos vs. Omar Khadr”, e foi repetida de cada vez que um dos potenciais jurados cedia a cadeira a outro para responder ao questionário destinado a determinar a sua imparcialidade no julgamento. Mas mais ninguém respondeu como ele. “Guantánamo devia fechar. Desgastou a autoridade moral da América no mundo.” E quando a acusação insistiu, o oficial, com experiência académica em Relações Internacionais, disse: “Não me parece que seja uma opinião diferente da do Presidente.” E apontou as suas razões: prisioneiros que nunca foram a julgamento, uso de tortura para extrair informação, a existência de locais secretos (leia-se: campos de detenção).

Os jornalistas presentes na sala do tribunal comentaram entre si que o oficial acabara de selar a sua saída. O que aconteceu nessa tarde, quando defesa e acusação voltaram para alegar as suas reservas em relação aos potenciais membros da comissão militar. Dos 15 oficiais examinados, restaram sete. Acusação e defesa tiveram de justificar os motivos por que pediam a exclusão dos membros do júri por si apontados, mas uma e outra tinham direito a uma “borla” – ou seja, podiam eliminar um jurado, mesmo depois de o juiz rejeitar as suas alegações. O oficial que defendeu o fecho de Guantánamo, identificado apenas como Número 16, foi excluído a pedido da acusação.

É um exemplo do paradoxo que é Guantánamo: dois dias depois de assumir a presidência dos Estados Unidos, Barack Obama ordenou o encerramento dos campos prisionais no período de um ano, mas 18 meses depois eles continuam em funcionamento e os primeiros dois julgamentos sob a nova Administração – Omar Khadr e o sudanês Ibrahim al Qosi, ex-cozinheiro de Osama bin Laden – só começaram esta semana. A lengalenga oficial, plasmada nos comunicados de imprensa e repetida pelo comando, é que Guantánamo é “seguro, humano, legal, transparente”, mas a base naval americana situada no Sudeste de Cuba que a Administração Bush reconverteu numa prisão para terroristas à margem da lei federal e internacional continua a ser um lugar de excepção.

“Short and sweet”

Mais de 30 jornalistas, incluindo o PÚBLICO, foram convidados a vir a Guantánamo assistir aos julgamentos – o dossier de imprensa entregue à chegada é detalhado no número de visitas de jornalistas em 2009 (221), mas menos exacto relativamente à actual população prisional (“aproximadamente 180 detidos”). Guantánamo disponibiliza visitas guiadas aos campos de detenção, mas são breves, superficiais e limitadas como uma visita guiada a uma atracção turística. A sensação é a de um convidado em casa alheia que não pode transpor a única sala que foi arrumada para impressionar as visitas. Os jornalistas são levados apenas aos campos de detenção menos restritivos e com condições “privilegiadas”, como o Campo 4, para prisioneiros “cooperantes”, onde existe um sistema comunitário: os detidos vivem em casinhas de estacas partilhadas, têm zonas de recreio e exercício físico, ar condicionado, TV, etc. Quando saem de Guantánamo, os jornalistas mostram aquilo que lhes é mostrado: as setas no chão a indicar o sentido de Meca, a biblioteca, o tapete de oração.

O responsável máximo de Guantánamo há apenas mês e meio, o almirante Jeffrey Harbeson, de 54 anos, recebe os jornalistas no seu quartel-general – o único espaço alcatifado visto pelo PÚBLICO desde que chegou a Guantánamo. É um homem diplomático, que diz que apenas cumpre ordens do Departamento da Defesa e que é “inspirador servir com os homens e mulheres” que estão estacionados em Guantánamo. “As condições árduas” em que estes militares trabalham é que é “a história verdadeira”, defende. E quando os jornalistas insistem em falar dos prisioneiros: “Desde 2005 todos os interrogatórios são voluntários.” “Temos um cuidado extremo com as refeições. Os detidos têm seis opções: refeição normal, condimentada, sem sal, com alto teor de fibra, vegetariano, vegetariano com peixe. Temos um nutricionista de forma a poder atender os pedidos que nos fazem. E servimos gelado duas vezes por semana. Levamos as diferenças culturais muito a sério: se não quiserem o alho cortado…” Harbeson repete a expressão “seguro, humano, legal, transparente” vezes sem conta. A conversa com os jornalistas é presenciada por dois militares das relações públicas. Quando Harbeson diz que no dia seguinte os jornalistas verão provavelmente os Campos 4 e 6, é interrompido por um deles. “Sir, o plano para amanhã é visitar só o Campo 4. We’re keeping it short and sweet.” O oficial que diz isto trouxe o seu próprio gravador. Na biblioteca

O Campo 7, onde alegadamente encontram os prisioneiros de “alto valor”, foi mantido em segredo até 2008, quando um oficial reconheceu a sua existência à agência AP, mas até hoje não foi admitido qualquer jornalista e a sua localização é desconhecida. No dossier de imprensa, o Campo 7 simplesmente não existe.

Jennifer Turner, monitora da American Civil Liberties Union que veio a Guantánamo assistir ao julgamento de Khadr, explicou ao PÚBLICO que ONG como a sua recusam visitar os campos de detenção, porque exigem acesso total. Não querem que uma breve visita seja usada por Guantánamo como uma certificação.

O PÚBLICO entrou no Campo 4, mas não passou da biblioteca – um pré-fabricado próximo da entrada e fora da zona prisional propriamente dita. À direita da porta da biblioteca, uma placa afixada na tela verde que embrulha tudo o que Guantánamo não quer que se veja, dizia: “Detidos na vizinhança. Mantenha o silêncio.” Dentro da biblioteca, um militar abriu o jornal USA Today à frente das câmaras para provar o respeito de Guantánamo pelas ditas “diferenças culturais” dos seus prisioneiros: o rosto de Michelle Obama, fotografada na sua visita a Espanha, era um borrão de marcador preto. Os rostos femininos são eliminados. “Eles não gostam de ver rostos de mulheres”, explica a bibliotecária, que não quer ser fotografada, nem responde a “perguntas pessoais” – de resto, como todo o pessoal, militar ou não, dentro dos campos de detenção.

Na estrada que passa rente ao Campo 4, a velocidade máxima permitida são 15 milhas (24 quilómetros). Do outro lado, o limite é o mar azul das Caraíbas, que os detidos não vêem. O Campo 4 é um imenso rectângulo vedado com tela verde e arame farpado. É uma prisão que se vê melhor de fora.

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