The Life of Others

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Julho foi o mês mais violento do Iraque nos últimos dois anos. Agosto é o mês em que as tropas de combate dos Estados Unidos abandonam o país, como previsto no acordo de segurança assinado entre o primeiro-ministro Nouri al-Maliki e o Presidente George W. Bush, como aconteceria de qualquer forma se esse acordo não existisse e Barack Obama estivesse, como está, no poder.

Julho foi o mês mais violento dos últimos dois anos, os anos em que a violência continuou a ser quotidiana mas deixou de matar aos 100 por dia e então pudemos todos pensar que a guerra tinha acabado e o Iraque estava salvo. Não é neste Agosto que vamos saber o que será do Iraque. Mas foi Julho que mostrou a quem não sabia – ou não queria saber – que todas as feridas abertas por Saddam e depois por Bush e por Rumsfeld e por Cheney – com Paul Bremer a ajudar – continuam lá.

“Bush incendiou o Iraque e Obama vai fugir do fogo”, disse-nos um escritor em volta de chávenas de chá e de muitos cigarros no café de um hotel de Bagdad. Ia Julho a meio. Hamed al-Maliki acha mesmo que o Iraque vai ficar muito pior do que já esteve antes de poder recomeçar. Quando isso acontecer, acredita, o Iraque não será este, com 18 províncias e fronteiras com o Kuwait, Irão, Turquia, Síria, Jordânia e Arábia Saudita. Serão vários Iraques.

Joe Biden tinha um plano para dividir o Iraque. Bush e os seus cérebros tinham outro. Era a democracia, o governo aliado em Bagdad, o efeito dominó, a tombar para Damasco e, quem sabe, para Teerão e Jerusalém. Esse plano assustou muita gente. O rei da Jordânia avisou que viria um “crescente xiita”, a unir o Líbano do Hezbollah a Bagdad e ao Irão dos mullahs. Amr Mussa, líder da insignificante organização chamada Liga Árabe, avisou que invadir o Iraque seria “abrir a caixa de Pandora”.

Depois, os planos caíram por terra e os avisos foram confirmados. Bush já só queria sair pouco humilhado. Obama, que antes de ser eleito, explicou que há guerras necessárias e outras que são só estúpidas, nunca quis que esta fosse sua. Por isso, os norte-americanos vão mesmo sair. Mesmo que ao fazê-lo estejam a “entregar o Iraque ao Irão numa bandeja”, como diz um xeque sunita que começou por combater os EUA e agora nem quer acreditar que eles vão sair sem o Iraque ter sequer governo.

Em Julho, houve atentados contra peregrinos xiitas e contra as milícias sunitas formadas para combater os extremistas estrangeiros que entraram no Iraque a seguir aos americanos. Houve um ataque contra a Zona Verde. Houve atentados suicidas, com rockets, com armas. Em Setembro também vai haver.

No Iraque, nasce-se mais do que se morre e isso é algo extraordinário. Porque se morre tanto no Iraque, todos os dias, desde 20 de Março de 2003. Morre-se de ir ao mercado e morre-se de ir ao cabeleireiro. Quem vive cansa-se de passar em checkpoints e de comprar gasolina para alimentar os geradores e de aproveitar quando há electricidade para encher os tanques de água. Quem vive quer viver e decidiu que há-de continuar a trabalhar, a querer casar e até a ter filhos.

No Iraque, nasce-se mais do que se morre e isso é extraordinário. Porque Saddam era um monstro e porque os americanos invadiram o país para depois se dedicarem à mais estúpida das ocupações que a história há-de registar. Já registou: basta ler o magnífico A Vida Imperial na Cidade Esmeralda, de Rajiv Chandrasekaran, onde há um miúdo neoconservador que foi contratado para reabrir a bolsa de Bagdad e conseguiu estar mais de um ano no Iraque sem o fazer porque queria a bolsa mais moderna do mundo e os iraquianos só queriam um quadro negro e giz. Basta procurar os grandes projectos que deveriam ter “ganho as mentes e os corações” antes da retirada e ver que há centrais eléctricas que não funcionam porque as máquinas trazidas de fora não funcionam com as estruturas que já existiam.

Hillary Clinton disse há três anos que o Iraque agora era um problema dos iraquianos. Pois é. Os iraquianos já perceberam e continuam a ter medo, como tinham quando todos os dias havia gente a fazer-se explodir. Os americanos salvaram-nos de um ditador. Depois, fizeram tudo mal, sempre, desde o primeiro dia. Distribuíram o poder entre seitas e fundamentalistas e isso afastou outros fundamentalistas que escolheram combater. Os bons, se puderam, fugiram, e nunca vão voltar. Ficou muita gente boa. A mesma que em 2003 queria confiar nos políticos que tinham vindo com os americanos e hoje já só quer ter mais umas horas de luz por dia. O dramaturgo Maliki só consegue ver mais guerra e depois um deserto. Aos poucos, do deserto, poderá voltar a nascer futuro. Mas Julho foi o mês mais violento dos últimos dois anos e Setembro pode bem ser pior.

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