If There Were No Islam

<--

De Istambul a Constantinopla – Se não existisse o islã, cristãos ortodoxos seriam (e foram) os inimigos do Ocidente

As operações de combate americanas no Iraque foram concluídas oficialmente nesta semana. Em Washington, os líderes israelense e palestino se reuniram para retomar as negociações de paz. Os dois eventos indicam uma redução na instabilidade no Oriente Médio, mas estão distantes de representar o fim dos conflitos na região, que se transformou no palco das principais guerras internacionais nas últimas décadas, levando parte da opinião pública no Ocidente a apontar o islamismo como a fonte da violência.

Guerra Civil do Líbano, Guerra do Irã-Iraque, Primeira Intifada, Guerra do Golfo, Segunda Intifada, Guerra do Líbano (Israel versus Hezbollah), Guerra de Gaza e Guerra do Iraque, genocídio em Darfur são alguns exemplos de confrontos que supostamente tem o islã como pano de fundo. Outros conflitos também envolvem muçulmanos na Ásia Central, com as duas guerras do Afeganistão, sendo a primeira contra os soviéticos e a segunda, nos últimos nove anos, comandada pelos Estados Unidos contra o Taleban e a Al Qaeda.

Também houve guerras com a participação de seguidores do Islã na Caxemira, na China, na Argélia e mesmo na Europa, em Kosovo e na Bósnia. Os muçulmanos também estão envolvidos em questões internas e situações de violência nos Estados Unidos, Inglaterra e Espanha, onde cometeram atentados em nome do islã. A Dinamarca e a Holanda viram a liberdade de expressão se chocar com os imigrantes muçulmanos. E o secularismo francês bateu de frente com o uso do hojab.

E a pergunta que muitos analistas fazem é se o mundo seria mais pacífico se não existisse o islamismo. Obviamente, teríamos a guerra contra as drogas na Colômbia e no México, a guerra da Geórgia, o separatismo Tâmil no Sri Lanka e conflitos civis no Congo, Ruanda e Burundi. Mas e todos os outros conflitos, da Argélia à Indonésia, da França ao Irã?

Para tentar entender como seria o mundo se Maomé nunca tivesse existido, ou se o profeta fracassasse ao difundir as palavras de Deus que, segundo a tradição islâmica, ele recebeu através do anjo Gabriel, o escritor e ex-vice presidente do Conselho de Inteligência Nacional do governo dos EUA, Graham Fuller escreveu o livro “A World Without Islam”, publicado nesta semana em Nova York. É um exercício comum dentro dos serviços de inteligência, como a CIA, onde ele também trabalhou. Na avaliação dele, nosso mundo não seria muito diferente de agora – a não, claro, por não ter toda a influência cultural islâmica, mas a base do livro é geopolítica. A diferença do planeta sem o islã, segundo ele, é de que o inimigo do ocidente seria o cristianismo ortodoxo, e não o islamismo – como, de uma certa forma, foi durante a Guerra Fria com a União Soviética, majoritariamente ortodoxa.

Cristãos no meio do islã

O mundo ortodoxo, considerado uma civilização à parte da Ocidental pelo cientista político Samuel Huntington no seu livro “Choque de Civilizações”, por séculos esteve ao redor de Constantinopla, hoje Istambul, então capital do Império Bizantino. Esta civilização ortodoxa sempre enxergou o catolicismo de Roma como inimigo, assim como o protestantismo nos anos seguintes. Ao mesmo tempo, os ortodoxos sempre viveram com muçulmanos no seio do seu império, lidando desde o início com o islamismo. Com a queda de Constantinopla, cristãos ortodoxos passaram a viver sob o domínio islâmico. E o coração da civilização bizantina se transferiu para Moscou.

Nestes séculos todos, os ortodoxos sempre enxergaram com ressalvas o mundo Ocidental e vice-versa. Basta ver a maior dificuldade da União Européia para integrar países ortodoxos da antiga cortina de ferro, como a Sérvia, Romênia e Ucrânia – os protestantes e católicos não tiveram tantas dificuldades. A civilização ortodoxa, por séculos, se posicionou de forma antagônica à Ocidental. Se não houvesse o islã, provavelmente eles estariam na vanguarda de conflitos no Oriente Médio.

Cristãos palestinos

Quer dizer, já estão. Os primeiros movimentos separatistas palestinos começaram com cristãos, como George Habash, da Frente Popular para a Libertação da Palestina. Muitos terroristas palestinos nas décadas de 1960 e 70 eram batizados na Igreja Ortodoxa. O maior defensor da causa palestina na academia foi por muitos anos Edward Said (um ortodoxo convertido ao anglicanismo). Até hoje, na cúpula do Fatah, há uma série de autoridades cristãs – aliás, a mulher e a filha de Yasser Arafat seguem o cristianismo em Paris. Os cidadãos árabes de Israel de origem cristã, com raras exceções, tampouco servem no Exército israelense. Eles se identificam como palestinos e vivem em meio aos muçulmanos em cidades de Nazaré e Jaffa.

A rivalidade entre cristãos ortodoxos e católicos pode ser observada mesmo na Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém. Não há representantes do Vaticano neste que é provavelmente um dos dois lugares mais sagrados do cristianismo, ao lado da Igreja da Natividade, em Belém. O controle da igreja está nas mãos dos cristãos orientais, o que incluí os ortodoxos, os coptas, os caldeus, os assírios e outras denominações. Os franciscanos, que representam o Vaticano em Jerusalém, apenas podem entrar durante a procissão da via Dolorosa às sextas-feiras. A principal autoridade religiosa cristã da cidade é a ortodoxa, sempre muito próxima das lideranças palestinas do que das israelenses.

Cristãos libaneses

Os ortodoxos também se identificam com os muçulmanos no Líbano. Na Guerra Civil (1975-90), sempre buscaram manter uma neutralidade nos conflitos envolvendo cristãos maronitas, que respeitam a autoridade papal e com algumas facções aliadas de Israel, além de xiitas, sunitas e druzos. Até hoje, o posto de ministro das Relações Exteriores libanês é reservado aos ortodoxos, que sempre entenderam melhor a balança de poder em um país multi-religioso e sobre como lidar ao mesmo tempo com países islâmicos e ocidentais.

Israel, atualmente, está em Estado de guerra com apenas dois países – o Líbano e a Síria. Os egípcios e os jordanianos já assinaram tratados de paz. Arábia Saudita, Iraque e mesmo o Irã podem não manter relações, mas não possuem disputas territoriais e tampouco se envolveram em conflitos contra os israelenses. Ironicamente, o regime de Damasco e o governo de Beirute não são comandados por islâmicos.

A Síria

Bashar al Assad, apesar de oficialmente muçulmano alauíta, não jejua no Ramadã, assim como vários de seus ministros. Ele é um líder secular. Sua mulher, que estudou nos EUA, não cobre a cabeça. O uso do hijab, assim como na Turquia, não é permitido em escolas e prédios públicos. O radicalismo islâmico é considerado um inimigo interno e foi alvo de um massacre cometido em Hama quando seu pai, Hafez al Assad, ainda era vivo. O conflito com Israel existiria mesmo se não houvesse o islamismo, já que a religião não pesa nas decisões do regime. Sem falar que os dois países (Israel e Síria) disputam as colinas do Golã, habitada por sírios druzos, que é praticamente uma religião separada do islã.

Em Beirute, o poder está dividido entre as religiões, com o cristianismo historicamente levando vantagem. O presidente sempre é um cristão maronita, o premiê, sunita, e o presidente do Parlamento, xiita. Metade dos deputados é cristã, assim como no gabinete. A maior parte dos generais, incluindo o chefe das Forças Armadas, precisam ser cristãos. Mesmo o Hezbollah conta com aliados cristãos nas operações contra Israel.

Cristãos e o nacionalismo árabe

O Iraque era controlado por um regime laico, de Saddam Hussein. Seu governo ainda se baseava no nacionalismo árabe e o seu segundo homem era o cristão Tariq Aziz. Era parecido com o regime de Gamal Abdel Nasser no Egito e outros nacionalistas árabes que dominaram a política da região até os anos 1980. Assim como no caso da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), os nacionalistas árabes não falavam em islamismo. Um dos pais do nacionalismo árabe foi o cristão ortodoxo Antoine Saadeh, que fundou o Partido Social Sírio no Líbano e, curiosamente, viveu no Brasil. Sua agremiação, ainda hoje, é dominada por cristãos ortodoxos em Beirute e adota um discurso radical contra Israel, além de cometer atos de violência.

Rússia lideraria conflito contra Israel e EUA

Se não houvesse o islã, provavelmente estes cristãos seriam os líderes das ações contra Israel, com o apoio da Rússia. O Iraque e o Egito poderiam ter sido regimes seculares administrados por cristãos defensores do nacionalismo árabe – foram justamente os ortodoxos em Beirute e Damasco que, nos anos 1920, assim como na semana de 1922 em São Paulo, lutaram para a determinação de uma identidade árabe. A Guerra do Irã-Iraque, certamente o conflito mais sangrento do Oriente Médio no século 20, não possuía caráter religioso. Eram persas xiitas  do Irã de um lado, contra árabes sunitas, xiitas e cristãos do outro. O conflito curdo tampouco envolve religião – eles são majoritariamente muçulmanos que lutam contra turcos, árabes e curdos.

No Afeganistão, os radicais islâmicos foram apoiados pelos Estados Unidos na luta contra os soviéticos. Os americanos queriam a União Soviética longe daquela região independentemente do islamismo. Não havia contraposição dos mujahedin ao Ocidente. A animosidade entre hindus e muçulmanos se intensificou depois da partilha, com remoção de 14 milhões de pessoas da Índia para o Paquistão e vice-versa. Provavelmente, se não existisse o islã, o conflito envolveria zoroastras e hindus. O genocídio em Darfur, na África, talvez existisse mesmo sem a existência do islã – basta ver os casos de Ruanda e Congo.

Integração no Ocidente

Nos Estados Unidos, os muçulmanos sempre foram bem integrados, apesar da piora nas relações depois do 11 de Setembro e, especialmente, neste ano, com a revista Time chegando a questionar se os americanos são islamofóbicos. Mas italianos, irlandeses, gregos, judeus e, claro, libaneses e sírios de origem cristã-ortodoxa passaram pelo mesmo problema quando imigraram e hoje estão integrados. Japoneses e russos, vistos como inimigos décadas atrás, tampouco são visados. Já os latino-americanos, incluindo os brasileiros, se transformaram em alvo de ataques da direita americana nos últimos anos.

A Europa é menos acostumada à imigração do que o Brasil e a Argentina, que por dez anos foi governada por um muçulmano árabe – Carlos Menem. A onda imigratória em países como a Itália ainda é recente. Porém, como afirma Fuller, imigrantes de outras origens também enfrentam problemas de assimilação – africanos na França e sul-americanos na Espanha e Portugal.

Terrorismo Cristão

O terrorismo suicida e a Al Qaeda são fenômenos recentes e tampouco podem ser restringidos ao islamismo. O primeiro sunita a se explodir na história da humanidade foi um membro do Hamas no início dos anos 1990 em Israel. Uma década antes, xiitas libaneses e iranianos também estiveram na vanguarda desta forma de ataque. Sem esquecer que, até a eclosão da Guerra do Iraque, em 2003, os Tigres Tâmil, que não são muçulmanos, lideravam o ranking de atentados suicidas. Conforme lembra Robert Pape, professor da Universidade de Chicago, que compilou todos os atentados suicidas ocorridos desde 1980 no mundo, no Líbano, os ataques suicidas não eram restritos aos muçulmanos. Dos 41 ataques ocorridos no país na década de oitenta, 27 foram realizados por comunistas e socialistas, três por cristãos independentes e apenas oito por radicais islâmicos.

A Al Qaeda, 15 anos atrás, nunca havia sido citada em qualquer órgão de imprensa ocidental. A palavra “muçulmano” ou “islã” não foi usada uma única vez em toda a cobertura do Estadão durante a Guerra dos Seis Dias (1967) – nem um mês antes, nem um mês depois. O Ocidente, segundo escreveu Edward Said em sua celebre obra “Orientalismo”, construiu a imagem do Oriente da forma que quis. No Brasil mesmo dá para ver as mudanças. Nos anos 1960 e 70, a imagem da mulher muçulmana era a da odalisca. Hoje, é a da burca. Um folião pode ser confundido como membro da Al Qaeda em um aeroporto dos EUA caso se empolgue com a marcha “Alá meu bom Alá” no iPod. Aliás, Alá quer dizer Deus em árabe, inclusive para os cristãos ortodoxos.

Existem mais crimes contra as mulheres nos países islâmicos. Porém muitos destes desrespeitos, como o apedrejamento de mulheres, “não é praticado apenas entre os muçulmanos e tampouco começou com o islã”, sendo uma tradição tribal antiga de algumas regiões da África e da Ásia, escreveu Robert Worth em recente artigo no New York Times. O mundo islâmico é tão diverso quanto ver uma menina muçulmana de biquíni na praia em Beirute e outra de burca em Riad.

About this publication