Edited by Kyrstie Lane
“É ineficiente, fere nossa posição internacional, reduz a cooperação com nossos aliados nos esforços de contraterrorismo, é uma ferramenta de recrutamento para extremistas e precisa ser fechada”, explicou Barack Obama, para concluir no ponto certo: “É contrária àquilo que somos”. O presidente americano referia-se à prisão de Guantánamo, onde cerca de 100 dos 166 detentos prosseguem numa greve de fome deflagrada por alguns deles mais de dois meses atrás. Ele não disse, claro, mas Guantánamo também é o nome da traição: o signo de um compromisso de princípios desonrado pelo próprio Obama.
A promessa de fechar a prisão offshore foi proclamada solenemente na primeira campanha presidencial, em 2008. No segundo mês de seu mandato original, Obama assinou uma ordem executiva para fechá-la, mas enfrentou feroz resistência bipartidária no Congresso. Os parlamentares cortaram os fundos necessários à transferência de prisioneiros e adotaram diversas medidas destinadas a evitar que fossem enviados a qualquer outro lugar. O presidente tinha as alternativas de vetar as decisões parlamentares ou de utilizar prerrogativas do Executivo para circundá-las, mas preferiu inclinar-se. Agora, quando assegura uma vez mais que Guantánamo “é contrária àquilo que somos”, ele precisa invocar a História e a Constituição para ocultar um consenso político que, vergonhosamente, interliga seu governo ao de George W. Bush.
Bush, seu vice, Dick Cheney, e seu secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, ergueram a prisão ilegal no curso de uma “guerra ao terror” que também borrou a assinatura de sucessivos presidentes americanos nas leis internacionais contra a tortura. Obama prometeu restaurar o princípio que separa a civilização da barbárie e, de fato, proscreveu os métodos desumanos de interrogatório aplicados nos anos sombrios de seu predecessor. Hoje, todavia, duas dezenas de prisioneiros de Guantánamo são submetidos a técnicas de alimentação forçada que violam seus direitos individuais e, para todos os efeitos, equivalem a tortura. Na expressão “aquilo que somos” está contida uma aspiração à eternidade. Entretanto, as nações mudam e mesmo os princípios mais sagrados estão sujeitos ao inclemente desgaste causado pela traição continuada.
Guantánamo é a síntese da barbárie judicial engendrada pela “guerra ao terror”. Concluídas as investigações, nenhuma acusação pesa sobre 86 dos detentos. Muitos deles deveriam ter sido soltos há anos, mas permanecem encarcerados, pois, sob alegações de “segurança nacional”, o Congresso proibiu tanto sua liberação em solo americano quanto o repatriamento para os países de origem. Os demais, por decisão parlamentar, não podem ser processados por tribunais civis, mas também não são julgados pelas “comissões militares” inventadas nos tempos de Rumsfeld, cujos trabalhos foram interrompidos quando seus procedimentos se revelaram insanavelmente ilegais. A greve de fome dos prisioneiros esquecidos, essas relíquias humanas dos anos de fúria, representa, objetivamente, um gesto de defesa das liberdades individuais e do império da lei. “Aquilo que somos”: neste momento, o rosto barbado dos detentos islâmicos de Guantánamo forma uma imagem exata dos princípios inscritos nos textos fundadores dos EUA.
Os valores fundamentais, “aquilo que somos”, não deveriam ser pesados no prato da balança dos interesses utilitários. Mas Obama tem razão em sublinhar a “ineficiência” de Guantánamo, especialmente contra o pano de fundo do atentado terrorista em Boston. Dzokhar Tsarnaev invocou o Afeganistão e o Iraque como motivações para a carnificina planejada pelos dois irmãos. Terroristas sempre terão pretextos para explodir pessoas inocentes. No limite, o vocabulário dos extremistas não exige mais que palavras como “imperialismo”, “capitalismo” ou “judeus”. Entretanto, nada se compara à força persuasiva da verdade: as imagens dos detentos de Guantánamo, essas provas emaciadas de um poder que não reconhece o limite da lei, são uma “ferramenta de recrutamento” mais eficiente que qualquer discurso produzido na fábrica de ódio do jihadismo.
Guantánamo “fere nossa posição internacional”. É isso, e mais: Guantánamo fere a luta pelos direitos humanos e pelas liberdades civis no mundo inteiro. Seguindo uma triste tradição do governo Lula, Dilma Rousseff mencionou o nome da prisão offshore na sua visita a Cuba, no início de 2012, como pretexto para silenciar sobre a morte de um preso político em greve de fome na ilha dos ditadores amigos. O nome funciona como uma senha mágica, um toque de reunião para os “companheiros de viagem” dos tiranos. Ele constava do dossiê infame preparado pela Embaixada de Cuba no Brasil contra Yoani Sánchez e foi repetido como um mantra pelos que tentaram cobrir sua voz com gritos insultuosos. Ele emerge ritualmente nos discursos dos chefes chavistas que ameaçam trancafiar opositores e fechar órgãos de imprensa.
Obama enuncia perfeitamente os males imensos causados pela prisão de Guantánamo, mas ainda vacila ante o imperativo de fechá-la. Como explicou um editorial da revista The Economist, a chantagem dos “fanfarrões e covardes” que comandaram a política antiterror de Bush consiste em apontar os riscos de liberar os suspeitos de terrorismo encarcerados sem acusação. O mito da bomba-relógio que faz tique-taque é o argumento clássico dos advogados da tortura. A resposta a essa malta de arautos da violação dos direitos humanos deveria ser clara e direta: muito pior que a ameaça hipotética de violência representada por esses indivíduos singulares é a desmoralização dos pilares filosóficos que sustentam as liberdades e os direitos.
Guantánamo é um trunfo dos jihadistas e dos tiranos. Se o presidente americano quer conservar “aquilo que somos”, tem a obrigação de, finalmente, resgatar seu compromisso de campanha.
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