Trump e a mídia
“Uma nação de ovelhas produz um governo de lobos.”
Esta frase é geralmente atribuída ao lendário âncora da rede CBS Edward Murrow, mais conhecido no Brasil pelo filme Boa Noite, e Boa Sorte (2005), dirigido por George Clooney. Em 1954, Murrow estava à frente da equipe responsável pela meia hora de televisão que desferiu um golpe decisivo contra o senador anticomunista Joseph McCarthy, cujo sobrenome virou sinônimo da caça às bruxas daquela década.
A metáfora da ovelha, em inúmeras variações, tem angustiado jornalistas norte-americanos, nos últimos dias. Mais uma vez, se encontram esbaforidos para subir num trem já em movimento. Há nove meses, desde que Donald Trump desceu a escada rolante de seu arranha-céu para anunciar sua candidatura e acusar mexicanos de estupradores, assistimos a uma sucessão de obituários que se revelam precoces, como bem colocou a editora da revista Time, Nancy Gibbs.
O rolo compressor Trump seria detido pela repulsa dos latinos, depois, por ridicularizar o heroísmo do senador John McCain, torturado no Vietnã, depois por acusar uma âncora da Fox de estar menstruada. O que não mata, engorda, dizem crianças ao pegar pipoca no chão. Alimentado por críticas ao seu comportamento escatológico, Trump se fortaleceu ainda mais, catando lixo e atirando em comícios. Há uma anestesia coletiva com a quebra diária de decoro, com o desdém por qualquer impacto que suas palavras possam provocar, entre o público ou entre os aflitos líderes aliados dos Estados Unidos. Vladimir Putin está contente da vida com o desempenho de seu candidato.
A angústia dos jornalistas políticos foi exacerbada por um mea-culpa em forma de coluna escrita por Nicholas Kristof, no New York Times. Em “Minha Culpa Compartilhada: A Mídia Fez Trump”, Kristof faz uma contrição que, previsivelmente, foi recebida com certo escárnio por colegas influentes. Não se pode discordar, como já argumentei neste espaço, que Trump encontra espaço fácil numa mídia insegura e sob assalto de pressões financeiras. Ou, como disse dramaticamente uma famosa ex-âncora consultada por Kristof, “a mídia precisou de Trump como um viciado em crack precisa de mais uma tragada”.
Mas os corredores onde decidiram dar, segundo cálculo do New York Times, US$ 1,9 bilhão de espaço grátis no ar a Donald Trump, não são cracolândia alguma. Assim como o Partido Republicano diz em código, há décadas, o que Trump escancara hoje, editores e repórteres não estavam sob o estupor do dependente de uma substância tão poderosa. O cinismo prevaleceu.
Vou concordar com Kristof num aspecto de seu arrependimento: se Trump fosse apenas uma farsa, não estaria conquistando vitória após vitória. O horror com seu sucesso não absolve a elite política de compreender o contexto de descontentamento dos que o carregam até a linha de chegada.
O outro sinal de insegurança da mídia é misturar jornalismo com entretenimento. Trump foi humanizado ao ser representado como o bufão, inclusive por esta colunista, e não como o perigo que representa. Hoje, um programa de reportagem-denúncia, produzido por um novo Edward Murrow, mal faria cócegas na candidatura Trump. Quando um jornalista perguntou a um eleitor de Trump se não preocupava por ele não apresentar um plano de política externa, ouviu a resposta: “Ele tem um plano, sim, mas não divulga para os concorrentes não roubarem”.
Noto, no Brasil, com o colapso do debate de ideias, reduzido a xingamentos e palavras de ordem, a frustração refletida na citação frequente da frase do finado senador nova-iorquino Daniel Patrick Moynihan: “Todo mundo tem direito à sua própria opinião, mas não aos seus próprios fatos”. Ao que o eleitor de Trump responderia: Isso é o que você pensa.
Leave a Reply
You must be logged in to post a comment.