A conjugação de paraísos e maçãs deixou de ter uma conotação exclusivamente bíblica para ter uma forte conotação fiscal. Como Adão fez há séculos, o governo irlandês sucumbiu às tentações da maçã ao trocar milhares de empregos locais por um cenário impositivo extraordinariamente vantajoso, em detrimento dos seus sócios comunitários, que têm agora despoletado a maior batalha fiscal da história.
Embora a denúncia europeia tenha amplificado a polémica sobre esta situação, a promiscuidade do modelo impositivo irlandês e das multinacionais tecnológicas americanas não é episódica.
À falta de outras riquezas ou atrativos naturais, a Irlanda tem feito do seu modelo fiscal uma fonte de riqueza alternativa, emulando a contrapartida económica que os portos ingleses arrecadavam dos piratas do século XVII, que neles depositavam o fruto da sua pilhagem. Agora, noutros portos britânicos, repete-se esta prática através de uma política impositiva que prejudica o equilíbrio do sistema fiscal europeu. Como Mark Twain escreveu, a história não se repete, mas faz rimas.
Em relação às multinacionais americanas, muitas delas tecnológicas e instaladas na Irlanda, parecem beneficiar da fragilidade do projeto europeu com negociações à medida nos paraísos fiscais intracomunitários. Os dados apresentados pela Comissão Europeia evidenciam que os libertários de Silicon Valley, enaltecidos pela sua capacidade sem limites para mudar o mundo, não fizeram nenhuma exceção com os sistemas fiscais dos países onde operam. Nesse sentido, resulta chocante o contraste do aparente progressismo do líder da Apple, Tim Cook, focalizado em causas tão nobres como os direitos das minorias ou a luta contra a mudança do clima, com as práticas de impunidade fiscal agora denunciadas, que põem em causa a sustentabilidade do sistema social europeu. Parece-me que nem Donald Trump chegaria tão longe.
O sentimento que resulta desta situação é que todos acabamos por trabalhar grátis para a Apple porque lhe entregamos alegremente os impostos arrecadados no nosso país, de cujos efeitos nós, e não os acionistas da empresa, deveríamos desfrutar. Mas o verdadeiro problema reside no facto de que, provavelmente, o que a Irlanda e a Apple fazem está dentro do quadro legal em vigor.
Só uma autoridade global com dentes poderá resolver estas assimetrias. Se assim não for, e com base na tendência autodestrutiva do capitalismo, a ruptura do contrato social, que tem a fiscalidade como uma das suas variáveis fundamentais, promoverá a desglobalização em prejuízo das próprias empresas que hoje mais desfrutam dos seus benefícios.
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