Clean Slate

<--

Tábua rasa

Rui Flores

15 de dezembro, 2016

As declarações do presidente-eleito dos Estados Unidos da América (EUA) sobre a política de uma só China irritaram particularmente Pequim. As palavras usadas pelo porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros chinês são prova do grau de perplexidade. É fácil perceber porquê. Donald Trump acaba de questionar uma política norte-americana com mais de 37 anos. Trata-se de uma espécie de linha de força da política externa de Washington, que esteve na base da aproximação dos EUA à China, iniciada por Richard Nixon e os esforços diplomáticos de Henry Kissinger.

Desde 1971, um ano antes da histórica visita do então Presidente norte-americano a Pequim, que todos os presidentes americanos têm defendido a política de uma só China. Embora só tenha sido articulada oficialmente em 1979, com a adopção pelo Congresso Norte-Americano da Lei das Relações com Taiwan (Taiwan Relations Act, TRA), a política tem sido quase integralmente respeitada e reafirmada nas declarações públicas dos governantes norte-americanos.

A política estabelece que há apenas um governo legítimo que representa a China, o da República Popular da China. Foi nessa altura que os laços formais dos EUA com o governo nacionalista de Taipé foram cortados. No entanto, embora reconheça a política de uma só China, para Washington, o estatuto de Taiwan está por ser definido. Quanto a isso, a política norte-americana defende uma resolução pacífica.

Como não se trata de um Estado soberano com o qual os Estados Unidos mantenham relações diplomáticas, a lei estabelece que tipo de relações podem ser estabelecidas com Taiwan. Ao longo destes 37 anos, isto tem permitido todo o tipo de trocas comerciais entre a ilha e os EUA, incluindo a venda de equipamento militar e de armas a Taipé. Aliás, a TRA é clara sobre o assunto: cabe ao congresso norte-americano determinar que tipo de assistência deve ser dada a Taiwan “para manter uma capacidade suficiente de autodefesa”.

Trata-se pois de uma política dúbia. Ou, utilizando a linguagem que se encontra expressa, por exemplo, na recente Estratégia Global da União Europeia para a Política Externa e de Segurança, trata-se de pragmatismo baseado nos princípios. Outros diriam que se trata de realismo puro e duro, dos interesses, das trocas comerciais. Mas isto é o que tem, de facto, marcado as relações entre Taipé e Washington.

Ao nível das visitas formais de representantes norte-americanos a Taiwan, o seu número tem sido escasso, de facto. De acordo com o levantamento efectuado pelo Congressional Research Service, um centro de estudos que dá apoio aos congressistas norte-americanos na elaboração de legislação, entre 1979 e 2014 apenas seis representantes de Washington visitaram Taiwan. Entre 1979 e 1992 não há registo de qualquer missão a Taipé; as visitas começaram apenas em 1992 e entre 2000 e 2014 nenhum responsável político norte-americano veio até este lado do globo. Nenhum destes dirigentes é oriundo dos chamados sectores sensíveis da governação: negócios estrangeiros, defesa, política externa ou assuntos internos. São de áreas específicas da administração, como o comércio, transportes, pequenas e médias empresas ou ambiente. A política norte-americana quanto a uma só China tem sido na prática respeitada quase ao milímetro.

O que não quer dizer que não haja vontade de a mudar. Apesar de ser uma pedra basilar das relações com Pequim, recordada esta semana pelo ministro dos Negócios Estrangeiros chinês (“A política ‘uma só China’ é a fundação do relacionamento saudável nas relações sino-americanas”, disse Wang Yi, na esperança que não venham a deteriorar-se), existe a intenção de mudar o conteúdo da TRA. Na tensão permanente que marca as relações entre o poder legislativo e o poder executivo nos EUA, há pouco mais de dois anos, um grupo de 29 membros da câmara de representantes escreveu a John Kerry sugerindo uma revisão da política que estava há mais de 20 anos sem ser alterada. As novas condições existentes em Taiwan, que havia passado por uma transformação estrutural, com a abertura democrática, permitiriam um outro tipo de relações com a ilha. Debalde. Apenas 21 Estados mantêm relações diplomáticas com Taiwan. Nações pequenas, fazendo parte, quase todas, do grupo de países em desenvolvimento económico, com as quais Taipé gasta 200 milhões de dólares norte-americanos em projectos de apoio ao desenvolvimento.

É evidente que o conteúdo da política externa do Presidente Trump é ainda pouco claro. Mas as nomeações que tem feito pressagiam que tudo poderá vir a ser posto em causa. Por exemplo, no que diz respeito a Taiwan, Trump tem-se rodeado de pessoas, como um antigo embaixador de George W. Bush nas Nações Unidas, John Bolton, que advogam um outro tipo de relacionamento, menos próximo de Pequim.

Donald Trump parece não querer deixar pedra sobre pedra no actual sistema internacional. Deu a entender isso na campanha eleitoral, quando insinuou uma retirada dos EUA da Europa, no âmbito da NATO, para desespero dos países que fazem fronteira com a Rússia; quando declarou que a Coreia do Sul e o Japão deveriam robustecer os seus orçamentos militares, mesmo recorrendo ao nuclear, para confrontarem a ameaça da Coreia do Norte; quando afirmou que com ele na Casa Branca a presença militar norte-americana seria reforçada no Mar do Sul da China. Estas primeiras declarações sobre política externa mostram que, de facto, a incerteza sobre o posicionamento dos EUA no mundo será a nota dos primeiros tempos da sua presidência. Uma espécie de caixa de pandora com consequências imprevisíveis.

About this publication