Trump não faz questão de afagar amigos; prefere acariciar adversários Terminou neste sábado (27) o megashow com que a China exibiu ao mundo o seu ciclópico projeto, a tal de BRI (Belt and Road Initiative, também chamada de Nova Rota da Seda). Xi Jinping, o ditador chinês, reuniu em Pequim 5.000 delegados de 150 países, incluindo 37 governantes (Jair Bolsonaro não estava entre eles). É uma demonstração de força que Donald Trump —em estado de guerra comercial com a China— não conseguiria igualar, se resolvesse convocar um encontro semelhante. Até porque Trump não faz a menor questão de afagar amigos. Prefere acariciar adversários, que, no fim do dia, acabam por dar-lhe as costas (vide o caso do ditador norte-coreano Kim Jong-un). É natural que haja enorme interesse pela BRI: trata-se, diz o Council on Foreign Relations, do “mais ambicioso pacote de projetos de infraestrutura jamais concebido”. Segundo os chineses, a BRI já chega a 4,4 bilhões de pessoas de 150 países e, no total, prevê investimentos na Ásia, Europa e África de mais de US$ 1 trilhão (R$ 3,9 trilhões, quatro vezes mais que a economia que se pretende fazer com a reforma da Previdência). Generosidade chinesa? Não. É a cunha com a qual a China pretende consolidar a sua já forte presença no comércio mundial e na geopolítica global. Acaba sendo, portanto, uma peça na disputa entre Estados Unidos e China pela liderança mundial. John Bolton, assessor de segurança nacional de Trump, não esconde o incômodo: acusa a China de “uso estratégico da dívida [criada pelos créditos da BRI] para tornar Estados africanos escravos dos desejos e demandas de Pequim”. O endividamento no âmbito da BRI é, de fato, um incômodo em muitos países, inclusive na América Latina, mas Deborah Brautigam (Johns Hopkins University) minimiza o problema, em artigo para o New York Times desta sexta-feira (26): cita estudos que demonstram que, embora, tanto na África como na América Latina, os empréstimos chineses sejam significativos, “é improcedente o medo de que o governo chinês esteja sendo deliberadamente predatório em tais países”. Seja como for, há esse colossal elefante na sala da diplomacia brasileira e, por extensão, há a necessidade de definir como lidar com ele. O número desta semana de Americas Quarterly traça em detalhes o retrato atual das relações China/América Latina. A China já é o segundo maior parceiro comercial do subcontinente, atrás apenas dos Estados Unidos, e investe em represas, ferrovias e redes elétricas. Seus celulares e veículos tornaram-se populares. Tudo somado, “parece que a China está na América Latina para ficar”, conclui Brian Winter, o editor da publicação. Se é assim —como a lógica manda dizer que é— não faz sentido o Brasil alinhar-se tão estreitamente com Trump, a ponto de ser parceiro dos EUA na guerra contra os chineses. Há analistas que atribuem às criticas de Bolsonaro à China, quando candidato, à queda nos investimentos chineses diretos no Brasil (de US$ 11,3 bilhões em 2017 para apenas US$ 2,8 bilhões em 2018). Seria uma estupidez embarcar na teoria aloprada do chanceler Ernesto Araújo, para quem Trump é o líder indicado para salvar o Ocidente. O Brasil ganha muito mais se ficar longe dessa suposta cruzada e navegar entre os dois gigantes sem vassalagem a um ou ao outro. Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.About this publication
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