Seria ingênuo achar que OMC passaria incólume pelo vendaval de Trump
EUA abandonaram o Acordo de Paris, a Unesco, o Conselho de Direitos Humanos da ONU e por aí vai
O ano é 1995, e o Brasil é afetado por uma medida protecionista dos EUA. O que faz o Brasil? Aciona o chamado tribunal da OMC (Organização Mundial de Comércio). Os EUA perdem a disputa em primeiro grau e apelam da decisão.
Na apelação, a decisão é confirmada. O que fazem os EUA? Errou quem pensou que eles xingaram o juiz, abandonaram o campo ou simplesmente ignoraram o resultado.
Eles mudaram sua legislação para implementar a decisão da OMC, eliminaram a medida protecionista e voltaram a importar gasolina brasileira.
Com essa disputa, o Brasil (em conjunto com a Venezuela) foi o primeiro país a acionar o então recém-criado Órgão de Apelação da OMC. Ganhou e levou. Contra os EUA.
A partir de 10 de dezembro, o Órgão de Apelação deixará de processar novas disputas.
Os EUA vêm sistematicamente bloqueando a nomeação de novos “juízes”, impedindo que haja a substituição daqueles cujos mandatos expiram. Com menos de três membros, o colegiado deixará de funcionar.
O incômodo dos americanos com o órgão tornou-se visível na administração de Barack Obama (2009 – 2017), mas a gestão de Donald Trump o levou às últimas consequências.
A partir de agora, a primeira instância segue funcionando normalmente, mas basta que uma parte decida recorrer para a disputa entrar num limbo.
Evidente que o sistema não era perfeito. Outros países também gostariam de reformá-lo. Mas, até a administração Trump, ninguém tinha considerado tirar o juiz de campo para mudar as regras do jogo.
Seria ingênuo achar que a OMC passaria incólume pelo vendaval promovido por Trump no mundo. Os EUA abandonaram o Acordo de Paris sobre o clima e o pacto nuclear com o Irã, saíram da Unesco, deixaram o Conselho de Direitos Humanos da ONU e por aí vai. Não terem abandonado a OMC já é algo notável.
Vários países têm explorado soluções criativas, ainda que imperfeitas, para a crise. A União Europeia propôs uma espécie de Órgão de Apelação do B enquanto o impasse persistir. A ideia é criar um mecanismo paralelo para julgar recursos, com a participação de ex-membros do “tribunal”.
A solução valeria só para os países interessados, mas tem seu valor se contar com o apoio de outros atores importantes.
A dúvida é se os americanos vão finalmente passar a conta, se vão dizer exatamente que mudanças querem fazer na OMC, ou se ficará claro que o objetivo era mesmo acabar com o Órgão de Apelação.
Antes que alguém diga, não é o fim da OMC. Não é o fim nem mesmo do sistema de solução de controvérsias.
Um número razoável de disputas termina na primeira instância, e ela continua funcionando. E a OMC faz mais do que solucionar disputas.
Ao longo de quase 25 anos, o sistema de solução de controvérsias, com um Órgão de Apelação, fez história no comércio internacional, ajudando a garantir que as regras acordadas fossem cumpridas.
É praticamente um milagre do direito internacional que o sistema tenha funcionado relativamente bem até hoje.
Seu desmonte tem consequências, inclusive para o Brasil, que nele obteve vitórias importantes para a Embraer, para os setores do algodão, do açúcar, de carnes e outros.
Para o setor siderúrgico brasileiro, alvo nesta semana do protecionismo americano, até reclamar ficou mais difícil.
O ano de 2019 será um capítulo sombrio na história do uso do direito para a solução de controvérsias internacionais.
Leave a Reply
You must be logged in to post a comment.