Andrew Cuomo cativou os americanos, mas também terá que responder, como outros políticos, se pecou por omissão ou deliberadamente na crise do virus
Dizer que um político tem “sangue nas mãos” por causa das mortes por coronavírus virou lugar comum – em muitos casos, injustamente; em outros, sujeitos a dúvidas.
Todos acabarão julgados, seja nas urnas, no tribunal da opinião pública ou até em tribunais de justiça mesmo, se houver como comprovar omissão ou inação criminosa.
Com certeza, muitos americanos, acostumados a uma sociedade litigante, estão pensando em abrir processos.
Dentre todos, o caso mais claro envolve Andrew Cuomo, o governador de Nova York que se tornou, ironicamente, o político mais popular dos Estados Unidos pela forma altamente engajada com que se jogou na batalha do coronavírus.
Cuomo não apenas é alvo da acusação mais comum – demorou muito para decretar a quarentena – como por uma diretriz assinada em em 25 de março.
Em razão dela, casas de repouso passaram a ser obrigadas a aceitar pacientes idosos dispensados por hospitais.
A intenção era boa: abrir espaço para o tsunami de doentes que recairia sobre o sistema de saúde de Nova York, que viria a somar mais de 23 mil mortos.
Entre primeiro de março e primeiro de maio, mais de 4.800 pacientes idosos, inclusive casos com coronavírus comprovados, foram assim encaminhados para os asilos, transformados em “câmaras de morte” pelo ambiente propício à contaminação generalizada pela doença que mata preferencialmente os mais velhos com mais complicações de saúde.
Entre os pacientes dispensados e os que viriam a ser contaminados, a conta redonda dá nos 10 mil mortos mencionados.
No fim do mês de março, quando Cuomo assinou a diretriz, a morte galopante na Itália e na Espanha já mostrava seus efeitos sobre os idosos.
É justo dizer que Andrew Cuomo tinha conhecimento disso e mesmo assim assinou a ordem? Muito provavelmente não. Mas há amplas margens para dúvidas.
“Vinte por cento dos entes queridos que perdemos morreram em casas de repouso porque o governador Cuomo e vários outros governadores forçaram a transferência de pacientes de Covid-19 em recuperação a ir para os asilos.”
A acusação foi feita por Janice Dean, que trabalha como meteorologista na Fox News. Ela perdeu os sogros, com intervalo de uma semana, e ficou mais revoltada ainda quando o governador apareceu no programa de seu irmão, Chris Cuomo, na CNN, e os dois ficaram fazendo piadas.
Cuomo também recebe ataques pela esquerda, caso alguém ache que o debate está enviesado.
“Uma análise feita pela Columbia University concluiu que se Nova York tivesse agido apenas uma semana antes, mandando as pessoas ficar em casa e manter o distanciamento social, teriam sido poupadas 17 mil vidas na área metropolitana”, acusou um artigo do Guardian.
O mesmo princípio, o de “se tivesse agido antes”, já foi empregado para o primeiro-ministro inglês, Boris Johnson; a escocesa Nicola Sturgeon e o espanhol Pedro Sánchez.
Na Inglaterra se reproduziu o “modelo” de enviar doentes de volta a asilos para liberar hospitais e UTIs.
As mortes excessivas, ou adicionais, nessas instituições chegaram a 24 mil, das quais 12.400 não relacionadas oficialmente ao vírus.
Atribuir a culpa toda às autoridades, que com certeza cometeram erros a um preço altíssimo, também é uma forma de ignorar a indiferença da sociedade em geral com os velhos doentes e vulneráveis. Em outra palavra, descartáveis.
Mas o componente político da pandemia não deixa o assunto ser encerrado.
Com o refluxo das infecções, a briga está pegando fogo na Espanha, onde o governo de esquerda enfrenta o tiroteio dos partidos de direita.
O caso do momento é o da demissão do comandante da Guarda Civil de Madri, Diego Pérez de los Cobos, por ter mandado um relatório em tom crítico à juíza que investiga a aprovação da manifestação feminista de 8 de março, transformada num foco de contágio – inclusive da ministra da Igualdade, Irene Montero, casada com o líder do ultra-esquerdista Podemos, Pablo Iglesias.
O documento faz críticas a Fernando Simón, o diretor de vigilância sanitária que tem muitas explicações a dar (demorou a cair na real e foi contra o uso generalizado de máscaras, entre outros erros).
Governos e autoridades sanitárias de diferentes países cometeram os mesmos erros diante de uma doença nova, com gravidade inicialmente disfarçada em seu local de origem – a China – e um conjunto de complicações nunca vistas antes.
Hoje, parece óbvio, mas como proibir as marchas feministas sem levar a pecha de machismo- a França também liberou a manifestação do 8 de março e, uma semana depois, quando o tamanho da desgraça já se desenhava, também autorizou o primeiro turno das eleições para prefeito.
Retroativamente, parece absurdo. Mas poderia Emmanuel Macron suspender uma eleição sem provocar um rebuliço político?
“Todos nós erramos”, disse Andrew Cuomo, referindo-se aos modelos que prognosticaram números absurdos, geralmente para mais – e continuam fazendo isso, sendo um dos casos mais recentes o do Instituto para Métricas e Avaliação de Saúde, da Washington University, que previu 125 mil mortes por coronavírus no Brasil.
“Todos estavam errados. Todos estavam errados”, repetiu.
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Colocar todo mundo no mesmo saco é uma forma de aliviar a própria culpa, mas até os maiores fãs de Cuomo, um mais do que potencial presidenciável do Partido Democrata em 2024 (ou até em novembro próximo, se algo der muito errado com Joe Biden), estão reticentes.
Não é fácil determinar o que foram mortes evitáveis, principalmente quando envolve pessoas já no fim da expectativa de vida, mas assinar uma diretriz mandando os idosos hospitalizados de volta para as casas de repouso tem um peso especial.
Nos países civilizados, a mortandade dos velhos não poderá passar em branco sob risco de desafiar o próprio conceito de civilização.
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