The American Spring

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AAmérica parece estar a viver a sua primavera. Ninguém o previu, mas, uma vez mais, ficou claro que acontecimentos singulares e inesperados podem “mexer” com o curso da história, provocando eventualmente mudanças drásticas e mesmo radicais. Ainda é cedo para saber todas as mudanças que o assassínio de George Floyd – mais um negro vítima do racismo americano, em pleno século XXI – poderá provocar, internamente, na principal potência mundial, mas os sinais já existentes permitem imaginar que serão mudanças importantes e significativas.

Apenas o futuro dirá quão radicais serão essas mudanças, mas não parece demasiado arriscado prever que poderão conduzir, dentro de 50 anos, a um contexto tão imprevisível e profundamente diferente em relação ao statu quo da época como o cenário provocado pelo movimento liderado por Martin Luther King pelos direitos civis dos negros, que, no mesmo período de tempo, levou à presidência o primeiro afro-americano, Barack Obama.

Espantou, desde logo, o impacto causado pelo homicídio – é assim que os procuradores se apressaram a classificar o sucedido – de Floyd às mãos de um grupo de quatro agentes da polícia de Minneapolis. Manifestações de repúdio surgiram em centenas de cidades norte-americanas, incluindo a capital, Washington, prolongando-se até à data. Do protesto contra o assassínio de George Floyd e da exaltação, sintetizada no slogan “Black Lives Matter”, de todos os negros vítimas, como ele, da violência policial, as manifestações evoluíram rapidamente para propostas de mudanças profundas no sistema policial e criminal do país, comprovadamente discriminatório, como atestado por estatísticas abrangentes e reputadas, relativamente aos cidadãos negros e outras minorias.

A perspicaz observação do ator Will Smith faz todo o sentido: “O racismo não tem ficado pior, o que acontece é que agora é filmado”, disse ele, aludindo ao facto de ter sido uma gravação amadora, feita com um telemóvel e que rapidamente se espalhou não apenas dentro dos Estados Unidos, mas, literalmente, pelo planeta inteiro, o facto que espoletou as ondas de choque subsequentes, no país e no mundo. Tal reação, note-se, é ainda mais impressionante por estarmos em plena pandemia de covid-19, que aconselha o isolamento e o confinamento gerais.

De qualquer modo, a minha opinião é que, além dessa circunstância – o assassínio de Floyd ter sido assistido quase “em direto” em todo o mundo -, pesou sobretudo o facto de, nos últimos anos, terem-se sucedido casos semelhantes, não tendo a justiça, de acordo com a perceção maioritária, responsabilizado devidamente os seus autores. O homicídio de George Floyd foi, portanto, a gota de água que fez transbordar o copo. Como disse o seu irmão na audiência inicial na Câmara dos Representantes, que está a discutir uma proposta de reforma policial submetida pelos democratas, os negros americanos – e todos aqueles que são contrários à persistente discriminação de que os mesmos continuam a ser alvo – estão cansados.

Será que a América está – como se antecipou o antigo presidente Barack Obama a dizer – num ponto de viragem? O facto de, nas manifestações que prosseguem em todas as cidades do país, estarem presentes cidadãos de todas as cores, idades, género, profissão e outras características alimenta essa possibilidade, embora só o desenrolar dos acontecimentos o possa confirmar ou desmentir. Obama realçou em particular a responsabilidade da juventude. “Nas últimas semanas, vimos os jovens posicionando-se e assumindo a liderança em todos os cantos do país. Através da organização e da mobilização, eles estão a mostrar-nos como é que podemos sustentar este momento para se conseguir uma mudança real”, disse ele, na sua conta pessoal no Twitter.

Para o reverendo Jesse Jackson, ativista dos direitos civis e antigo candidato presidencial, essa mudança não deve limitar-se à reforma do sistema policial e criminal. Em entrevista à CNN, ele afirmou que os Estados Unidos precisam também de reformar a economia e a saúde. Segundo mostram todas as estatísticas, os afro-americanos são os mais afetados pela pobreza e os que mais sofrem – como se vê agora na pandemia do novo coronavírus – com a falta de um adequado atendimento médico. Numa palavra, o antirracismo deve caminhar lado a lado com a luta pela justiça social.

Não será fácil, por duas razões. Primeiro, o modelo de sociedade do país tem uma dificuldade histórica em compatibilizar o individualismo, a livre iniciativa e a democracia política com um maior equilíbrio social, como se percebe pelo debate interminável sobre o sistema de saúde. Segundo, o atual presidente norte-americano, Donald Trump, não parece, pelo menos até agora, sensível à voz das ruas, pelo contrário, prefere opor-se a ela com todo o peso da “law and order” (lei e ordem), tendo chamado “terroristas” aos manifestantes e ameaçado chamar as Forças Armadas para contê-los. A reação contrária de vários líderes militares, entretanto, confirma, apesar de tudo, a vitalidade do sistema democrático americano.

Os cidadãos americanos saberão, seguramente, encontrar as soluções consensuais ou maioritárias para ultrapassarem o atual momento, não apenas desmantelando o racismo estrutural que ainda prevalece no país, mas também aprofundando os seus melhores valores tradicionais, que são um exemplo para todos os povos. Por isso, o mundo acompanha com o máximo interesse o que está a acontecer na América.

A grande questão é: para onde penderá o liberalismo americano? Para o populismo conservador e supremacista branco ou para a consolidação da sociedade diversificada e aberta ao mundo correspondente à sua maioria demográfica, construída ao longo das últimas décadas?

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