Descompasso com um governo democrata nos EUA ampliaria o isolamento do Brasil
Ao início do ano, as chances de vitória de Joe Biden pareciam remotas. Hoje elas se tornaram plausíveis, sobretudo em decorrência dos sucessivos reveses de Donald Trump na gestão da crise do coronavírus, na deterioração da economia e na mobilização da sociedade contra o racismo.
Não que a vitória de Trump esteja afastada. O desemprego pode sinalizar uma melhora ou a vacina contra o vírus começar a ser distribuída. Mas o fato é que a melhora de Biden nas pesquisas é consistente. As sondagens conferem ao candidato democrata uma dianteira de cerca de dez pontos na média nacional e uma vantagem de 279 delegados para o colégio eleitoral, contra 188 para Trump. O próprio perfil de Biden, conciliador, moderado, propenso à convergência e à busca de união, em vez da divisão, vai-se mostrando apropriado para presidir as transformações profundas na sociedade.
O que seria um governo democrata? No plano interno, sobressai o desafio de retomar a economia e de acomodar expectativas de duas correntes relevantes para a vitória nas eleições: os aguerridos eleitores de Sanders e a comunidade afrodescendente.
A ala de Bernie Sanders sustenta duas bandeiras principais: a extensão do Obamacare a todos, isto é, aos 30 milhões de americanos que não contam com nenhuma cobertura de saúde; e o chamado Green New Deal, que traria maior participação do Estado na indução do crescimento e na inclusão social, associada ao compromisso com a causa ambiental.
A comunidade negra, energizada por cerca de 2 mil manifestações de protesto, apenas nos Estados Unidos, afirma que é chegada a hora de adotar políticas estruturais para enfrentar um racismo que se tornou sistêmico.
No plano externo, apesar da polarização na cena mundial, os desafios de Biden são contornáveis. Sua diplomacia deverá expressar os valores e princípios entronizados na campanha eleitoral, como meio ambiente, defesa dos diretos humanos e um multilateralismo reformado, marcas da administração Obama.
A confrontação com Beijing dificilmente será superada em curto prazo. A decisão de conter a China resultou de um entendimento bipartidário que contou com o apoio de cerca de 70% dos eleitores. Além disso, o contencioso bilateral tem um componente estratégico, em certa medida antagônico: a China pretende o reconhecimento de sua emergência como uma das duas superpotências do século 21. Trump optou por conter essa emergência. Biden provavelmente buscará, em vez da escalada das sanções, um modus vivendi que separe áreas de competição estratégica dos setores de cooperação.
Com a Europa persistirão dificuldades objetivas que as ameaças de Trump contribuíram para agravar, como o gasoduto Nord Stream 2 com a Alemanha, a taxação das Giant Techs com a França ou as diferenças quanto à reforma da Otan e da OMC. Mas não há nada que não possa ser negociado no âmbito de um propósito comum de reconstruir uma aliança que não precisava ter sido ameaçada.
Com relação aos países que possam representar uma ameaça à segurança dos Estados Unidos, como Rússia, Irã e Coreia do Norte, o governo democrata contará com as sanções unilaterais impostas por Trump para negociar os seus interesses e as próprias sanções, a partir de uma posição de força.
As eleições de novembro não deverão ser apenas uma corriqueira escolha de dirigentes ou partidos. Ao contrário, incluem uma agenda complexa que poderá configurar um novo contrato social e um ajustamento externo às novas realidades de um jogo de poder multipolar. O novo presidente precisaria contar, além de suas qualidade de moderação e equilíbrio, com forte apoio político. Nesse aspecto a conquista do Senado poderá ser relevante.
As implicações para o Brasil de eventual eleição de Biden serão significativas e decorrerão, sobretudo, do equívoco de colocar as principais fichas nas mãos de Trump e de suas políticas A eleição de um democrata poderá levar a um desencontro em temas como multilateralismo, meio ambiente e o próprio projeto de um Green New Deal, ainda pouco claro, mas que conta com simpatia nas hostes de Biden e na Europa.
A consequência desse descompasso seria ampliar o isolamento do Brasil, que já se manifesta em nossa própria região, nas convergências históricas com a Europa e até mesmo nas relações com um importante parceiro econômico, como a China. Lamentavelmente, o Brasil parece ter optado por hostilizar ou distanciar-se exatamente daqueles que mais compram de nós ou investem em nosso país.
Os índices de desflorestamento na Amazônia seriam uma fonte permanente de fricção com um governo como o de Biden, apoiado por uma ativa militância ambientalista, tanto na sociedade e na mídia quanto no Congresso. Nesse sentido, a criação do Conselho da Amazônia é um passo na direção correta. Mas vale a pena ter presente a advertência do embaixador da Alemanha, pouco antes de deixar o País: as medidas para combater o desflorestamento precisam ser drásticas, rápidas e continuadas.
*Sergio Amaral foi Embaixador em Washington
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