A corrida mais louca do mundo
Cinco grandes fatores distinguem os contextos eleitorais de 2016 e 2020. Apesar de todos favorecerem Joe Biden, a verdade é que, a três dias de uma eleição existencial para a América, a competitividade está ao rubro. Há razões para isso.
Bernardo Pires de Lima
Ahistória presidencial americana diz-nos que dificilmente um presidente é reeleito quando enfrenta um ciclo económico negativo. O último que o conseguiu foi William McKinley, em 1900, tendo os outros quatro que se seguiram em semelhante contexto sido derrotados: William Taft (1912), Herbert Hoover (1932), Jimmy Carter (1980) e George H. Bush (1992). À partida, a história não favorece Donald Trump, a braços com a maior contração económica da história americana (queda de 31% do PIB no segundo trimestre de 2020) e uma taxa de desemprego neste mês de outubro de 7,9%, quando em abril atingiu os 14,7%, a maior no pós-guerra, decréscimo que resulta do pacote federal extraordinário de apoio ao emprego. Aditam a isto 225 mil mortos e quase nove milhões de infetados pela covid e perto de duas mil fábricas encerradas pelos efeitos da “guerra comercial” com a China. Mesmo que o terceiro trimestre assinale uma recuperação do PIB, ele continua quase 4% abaixo do valor do início de 2020. Em 2016, à entrada na reta final da campanha, o PIB tinha crescido 3,2% no terceiro trimestre e o desemprego estabilizado nos 4,9%, após 76 meses consecutivos de criação de emprego. Se os factos na economia marcam a primeira distinção entre 2016 e 2020, a verdade é que se o ciclo económico positivo não beneficiou Hillary Clinton, a candidata da continuidade, continua a ser possível a Trump contrariar a história e atacar a reeleição em contexto desfavorável.
A segunda diferença entre 2016 e 2020 está no nível de coesão da plataforma democrata. Há quatro anos, após umas primárias desgastantes entre Clinton e Bernie Sanders, a paz interna nunca foi alcançada. Basta lembrar a monumental assobiadela com que os apoiantes de Sanders brindaram Hillary na convenção democrata, as críticas à dualidade de critérios da liderança do partido e a total falta de entusiasmo com a campanha da antiga secretária de Estado. Essas feridas nunca sararam e foram até complementadas com a deserção de muitos eleitores de Obama que, nalguns estados decisivos, acabaram na abstenção ou mesmo em Trump. Hoje, o quadro é diferente. Biden arrumou as primárias muito cedo, ajudado também pela emergência pandémica, e tanto Sanders como Elizabeth Warren mostraram sempre uma lealdade pragmática, a que Biden retribuiu com inteligência, criando um mês antes da convenção do partido uma série de grupos de trabalho mistos, juntando personalidades indicadas pelas três alas para elaborarem propostas e consolidar a plataforma política. Esta nunca quebrou e isso é uma das razões para a extraordinária mobilização que os números do voto antecipado indicam. Os milhões de Mike Bloomberg têm dado o empurrão logístico que faltou em 2016.
O voto antecipado é a terceira distinção em relação às últimas presidenciais. Cerca de 60% dos eleitores de há quatro anos já votaram por correio e presencialmente (82 milhões). Texas, Arizona e Florida registam a uma semana das eleições entre 75% e 95% do total que votou em 2016. A participação jovem (18-29 anos) está a bater recordes em estados como o Michigan (12 vezes mais do que nesta altura em 2016), Texas (7), Carolina do Norte (4), Florida, Arizona e Geórgia (3), números que apenas contabilizam cadernos eleitorais com filiação partidária e onde os democratas são maioritários, tal como na identificação com os mais novos. É evidente que isto não significa que Trump não seja competitivo no voto antecipado ou mobilizador. Claro que também é, sobretudo se tivermos em conta a imensidão do voto silencioso de 2016 e que pode repetir-se. O meu ponto não é adivinhar o resultado com base nisto, é ilustrar mais um ponto que distingue os contextos eleitorais de 2016 e 2020.
Há pelo menos mais dois traços de distinção. Um deles é que Biden não é Clinton. Apesar das décadas de experiência política no Senado e na Casa Branca, a história de vida de Joe Biden aproxima-o mais do americano médio do que o porte aristocrático e distante de Hillary. Biden é muito mais empático com os eleitores, sejam eles quais forem, estejam onde estiverem. As sondagens mostram taxas de confiabilidade e honestidade muito superiores e, não menos importante, uma acomodação no eleitorado moderado independente acima dos 30 pontos percentuais face a Hillary Clinton. Mais uma vez, isto não significa um salto imparável para a vitória, apenas ajuda a distinguir os contextos políticos e as personagens.
O outro traço de distinção é o próprio Trump. Se em 2016 foi uma novidade no palco das presidenciais, tão repentina como bizarra, hoje isso não existe. Há quatro anos, precisamente por trazer essas características, a campanha democrata desvalorizou-o, uma soberba transmitida aos eleitores (os tais “deploráveis”) e na falta de campanha em estados dados como garantidos, nos quais Trump venceu por menos de cem mil votos. Hoje, ninguém na campanha Biden está a cometer os mesmos erros. Além disso, há uma avaliação a fazer ao mandato de Trump que não existia, sobretudo centrada na pandemia, um autêntico referendo à gestão do presidente. O que Trump habilmente tenta vestir é o fato do candidato antissistema, do não político, de quem volta a desafiar a presidência, como se o cargo não fosse dele. Isto teve cabimento em 2016, dificilmente faz sentido em 2020. De qualquer forma, não subestimemos o nível de identificação irracional de muitos milhões com esta lógica. Ela existe, resiste e pode voltar a exprimir-se. E ser eficaz. Todavia, objetivamente, o efeito novidade de Trump, tão importante há quatro anos, distingue os dois contextos eleitorais.
Trump tem quase tudo a desfavor, mas pode vencer
Mas se estes cinco traços tendem a favorecer Joe Biden, o que explica estarmos perante umas presidenciais tão competitivas, com o resultado em aberto? Uma das razões está na forma como Trump soube alimentar a raiva e o medo da sua base. Ela pode não ser suficiente para ganhar, mas não sofreu nenhuma desmobilização. Por um lado, no Senado, como se provou na votação ao impeachment e agora com a nomeação da juíza Amy Coney Barrett para o Supremo, os republicanos estão solidamente com o presidente. Por outro lado, na sociedade americana, e apesar dos níveis de impopularidade, Trump tem uma receita infalível para manter a frente unida: incendeia os instintos antiprogressistas com ciclos ininterruptos de alarmismos culturais trazidos pelo “socialismo” democrata, mergulha Biden em suspeições de carácter para diluir os factos que afetam o próprio presidente, e abraça teorias da conspiração sobre diversos temas políticos e sociais de forma a instigar as massas em sucessivos ataques continuados.
Outra razão está na desvalorização oficial do voto por correspondência, propositadamente mergulhado num saco que mistura fraude e um interminável calendário de contagem. Para termos uma ideia, dos 82 milhões que já votaram antecipadamente, 53 milhões fizeram-no por correio. Porém, nos últimos dias tem havido um crescimento acelerado de registo eleitoral republicano em estados como Wisconsin, Michigan ou Pensilvânia, precisamente para atacar o dia eleitoral com a máxima força. Trump quer anunciar vitória a 3 de novembro, para diminuir a legitimidade das contagens por correio que venham a seguir. Aqueles três estados, onde Biden tem margens parecidas com as de Hillary, têm particularidades que podem fugir às sondagens, como o alarmismo provocado pelos planos de “economia verde” de Biden na indústria automóvel ou a defesa da “lei e ordem” de Trump por parte dos eleitores mais velhos, em zonas rurais e suburbanas, perante uma perceção de destruição urbana e antipolicial. Como sabemos, a perceção pode ser tudo em política, sobretudo se conduzida num permanente estado emocional polarizador, mesmo que estudos recentes tenham concluído que 93% dos mais de sete mil protestos do Black Lives Matter no último verão tenham sido pacíficos. De qualquer forma, factos e ciência nunca foram tidos em conta pelo trumpismo, não era agora que iriam ser.
Um outro fator que torna Trump tão competitivo está no tipo de campanha que faz em plena pandemia. Comícios com centenas ou milhares de pessoas amontoadas contrastam com os drive-ins improvisados da campanha democrata, com muito menos gente. Trump continua a ter um autêntico exército de fiéis, cegos no culto do chefe, hipersensíveis a um eixo inquebrantável: ameaça chinesa (criadores do vírus e de desemprego), desregulação e impostos (poder federal como anticristo) e conservadorismo cultural (agenda democrata é antiamericana). Em bom rigor, parte substancial desta agenda já era republicana antes de Trump surgir, o que este lhe acrescenta é um carrossel de mensagens truncadas, manipuladas e extremadas, de forma a capitalizar na trincheira ideológica a mobilização permanente. O perigo para os democratas é que ela pode não estar a ser medida nas sondagens e só ter expressão no dia 3. Apesar disso, ao contrário de 2016, existe também hoje uma ampla frente anti-Trump, o que adensa a incógnita eleitoral.
Umas eleições existenciais
Estas presidenciais – que devem ser alargadas às eleições para as duas câmaras do Congresso para termos a noção mais precisa da polarização, da (in)governabilidade e até da resolução da disputa presidencial (a Câmara dos Representantes pode, em último caso, ser chamada a isso) nos próximos meses – estão a ser encaradas como existenciais pelos dois lados. Para os democratas, tornou-se na hipótese mais próxima de recuperar a Casa Branca e até o Senado. Depois do trauma de 2016, é difícil acreditar numa recuperação anímica rápida se voltarem a perder. Será a demonstração de uma incapacidade atroz num contexto tremendamente negativo e que tende a prejudicar o presidente em exercício; de uma incompetência em fazer passar a mensagem correta e aprender com erros passados; de uma inabilidade em restituir decência à função presidencial e recuperar o sistema político de alguma normalidade. Muito provavelmente, ditaria ainda o fim da linha a uma geração política que fez a transição da Guerra Fria até aos nossos dias. Biden, Sanders e Warren, tal como os Obama e os Clinton, terão as novas gerações do partido a clamar por espaço e legitimidade, abrindo de facto uma nova era geracional e ideológica nos democratas. Caso Biden vença, idealmente com um novo Congresso alinhado, esta sucessão terá de esperar uns anos.
Para os republicanos, o caso não é de menor relevância. O partido deixou de ser uma plataforma de ideias e respeitabilidade ética, para assumir um vazio programático gritante, um seguidismo ao trumpismo sem espírito crítico, e um oráculo das teses conspirativas do presidente. Nem sequer conseguiu uma demarcação à acomodação que Trump faz aos movimentos supremacistas brancos, principais autores dos crimes de ódio atualmente na América. Neste sentido, o partido de Lincoln morreu. Num outro, foi também o de Reagan que desapareceu. Se Trump perder, crise agravada por uma perda da maioria no Senado, o GOP entrará num fosso profundo, do qual tão cedo não se erguerá. O rasgo nas políticas públicas não existe e a tenacidade para enfrentar a maior crise desde a Grande Depressão é juvenil, sem qualquer estratégia. Não há sequer rostos de oposição interna com capacidade evidente para montar uma plataforma alargada, construtiva na política interna e externa, capaz de fazer pontes institucionais com os democratas. Mesmo se Trump vencer, o partido republicano acentuará a dependência de um presidente que o esvaziou, desvirtuou e o tornou moribundo.
Uma vitória de Biden pode ser o início de alguma normalidade na política americana, mas ela nunca será consolidada se os republicanos não se reinventarem. E vão ter de o fazer com ou sem Trump. A política americana segue dentro de momentos.
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