EUA mais divididos do que nunca
Joe Biden terá pela frente duas Américas incompatibilizadas, culturalmente opostas, socialmente incomunicáveis. Governará como pode e não como quer.
10 de Dezembro de 2020, 18:30
Joe Biden prepara-se para se tornar no 46.º Presidente dos EUA, sucedendo ao polémico, catastrófico, turbulento e impreparado Donald Trump. Foram os dois mais votados da história do país.
Não deixa de ser muito preocupante que os eleitores de Trump tivessem votado num indivíduo sem o mínimo de decência e um irresponsável que não hesita em pôr em causa sequer o mais sagrado acto numa democracia, a eleição. A grande experiência e os valores de Biden apontam para uma necessária ética que reponha a unidade do povo americano e o dever da cooperação internacional em confiança e paz.
Joe Biden propõe-se restabelecer a liderança americana no mundo, revertendo o unilateralismo da Administração Trump. Contudo, a prioridade é, sem dúvida, ao nível da política interna. A tarefa passa por sarar as profundas feridas de um país muito dividido, polarizado e fragilizado. A grande tarefa de um Presidente é ser capaz de transformar uma sociedade tribalizada numa comunidade institucional.
No entanto, Barack Obama tem razão para dizer que está “cautelosamente optimista”, pois Joe Biden ganhou, mas os EUA continuam a perder. Nenhuma democracia é governável com os níveis de polarização que se identificam. Estas eleições e o que se passou antes e se vai passar mostram uns Estados que de unidos já não têm nada. Dois campos que não se ouvem, que se recusam sequer a conversarem, com valores e verdades sem pontos de contacto.
Uma comunidade vive das pontes que os membros constroem. Vive de um conjunto de valores e princípios comuns. Vive de verdades partilhadas. Uma comunidade dificilmente sobrevive a uma tensão tão grande como a que se vive nos EUA.
Biden começa por ter de enfrentar o período de transição conturbado, que coincide com a necessidade de apresentação de um plano eficaz de combate à pandemia e recuperação da economia. O Presidente eleito tem uma carreira de décadas no Senado, tendo sido vice-presidente de Barack Obama. É um moderado, centrista e seguramente um político capaz de fazer pontes e chegar a acordos bipartidários – essenciais mas muito difíceis quando a maioria da Senado deve continuar nos republicanos.
Por outro lado, é possível que Trump – com a fortíssima votação obtida – se mantenha como alguém importante para os republicanos. A sua derrota está muito longe de marcar o fim do trumpismo nos EUA. Trata-se de um movimento populista, nacionalista antidemocrático, ultraconservador e autoritário verdadeiramente global, pelo que continuará a constituir uma ameaça à democracia não apenas americana, mas em todo o mundo.
Trump perdeu as eleições, mas o trumpismo cresceu e sobrevive-lhe. Importa sinalizar que muitos dos que votaram em Trump não o fizeram por ter qualquer amor de perdição por ele, mas porque tinham razões sérias para estar descontentes. Sofreram muito os efeitos da globalização, dos acordos de comércio livre, da automatização, da robotização, do colapso financeiro de 2007/08, da grande recessão que se lhe seguiu, da estagnação de rendimentos há mais de três décadas e do crescimento significativo das desigualdades. Tudo isto continua a existir. E a Cintura da Ferrugem (Rust Belt) está cada vez mais enferrujada.
Joe Biden terá pela frente duas Américas incompatibilizadas, culturalmente opostas, socialmente incomunicáveis. Governará como pode e não como quer. Biden já se definiu como um Presidente de transição e talvez cumpra apenas um mandato. A dúvida é o que virá depois dessa transição. Trump já ameaçou que poderá voltar em 2024.
Trump continua a ter uma enorme força. Subiu a votação que tinha tido, tem um poder que pode usar no espaço mediático, inclusivamente para influenciar o futuro do Partido Republicano, ou até pode criar um novo partido. Pode tentar influenciar quem será o futuro candidato do Partido Republicano, e que seja alguém muito próximo dele ou até da família.
A nível internacional, Trump apoiou uma série de líderes não liberais que, como ele, estão mais preocupados com a sua própria sobrevivência política do que com a saúde democrática dos seus países. Esses líderes não vêem nenhuma utilidade para os direitos humanos, excepto quando os invocam selectivamente por motivos de interesse próprio.
Sob o mandato turbulento de Trump, os EUA renunciaram abertamente à tutela da “ordem liberal”. Mas não nos devemos iludir pensando que a vitória do seu adversário democrata, Joe Biden, significará um retorno imediato ao mundo de ontem.
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