Al Smith em 1928 tanto foi diabolizado como o anticristo como acusado de querer construir um túnel entre a Casa Branca e o Vaticano e perdeu as presidenciais, John Kennedy foi eleito em 1960 depois de obrigado a garantir que a sua lealdade era à América e não ao Papa, mas Joe Biden venceu agora as eleições e pouco destaque se deu ao facto de ser católico, na verdade apenas o segundo a ser presidente em quase dois séculos e meio de história.
Falar de história aqui tem uma relevância tremenda: calcula-se que em 1776, quando os Pais Fundadores assinaram a Declaração de Independência escrita por Thomas Jefferson, os católicos não seriam mais de 1% dos americanos. A colonização britânica tinha atraído os anglicanos, seguidores da religião oficial do monarca, mas também uma multiplicidade de seitas protestantes vindas do Velho Continente. Os católicos só começaram a ser visíveis no século XIX, com os imigrantes alemães e irlandeses. Depois, e cada vez em maior número, foram chegando italianos e polacos, portugueses também. E os séculos XX e XXI viram ainda a multiplicação de latino-americanos. O resultado é que hoje um quarto dos 330 milhões de americanos são católicos. E os Estados Unidos surgem no mundo como o quarto país com mais católicos, depois do Brasil, do México e das Filipinas, mas à frente de Itália e de França.
Biden, candidato democrata vencedor a 3 de novembro, vai à igreja aos domingos. Também às vezes noutros dias. Quando foi vice-presidente de Barack Obama conheceu Francisco (e antes Bento XVI) e parecem ter simpatizado um com o outro, com o Papa já entre os líderes que felicitaram a recente eleição. Mas, como escrevia há dias o The Washington Post, “Joe Biden goes to church, politics remains outside”, ou seja frequenta a igreja, mas separa a crença religiosa da ação política. É célebre, aliás, o episódio do encontro de Biden, ainda senador, com João Paulo II, em que evitou beijar o anel papal, uma recomendação da mãe, descendente de irlandeses e que sempre ensinou ao filho que ninguém era mais do que ele, fosse o Papa ou a rainha de Inglaterra.
Pelas contas da Associated Press, os católicos nas últimas presidenciais dividiram-se quase ao meio entre Biden e o presidente republicano Donald Trump, 49% e 50%. Como em 2016 Trump obteve 60% do voto católico, num duelo com Hillary Clinton, protestante como ele, é tentador tirar ilações sobre os ganhos do Partido Democrático em apresentar um candidato católico, mas não nos devemos precipitar. Não só a afluência às urnas neste ano foi recorde, como Trump já não era uma incógnita para o eleitorado e, por outro lado, Biden conseguiu ser muito mais consensual entre as bases partidárias do que a antiga primeira-dama (e ex-senadora e ex-secretária de Estado).
Adepto de políticas sociais (o Obamacare para garantir cuidados de saúde é um dos grandes legados dos seus oito anos com Obama) e tolerante com a imigração, o que o faz estar em sintonia com o Papa, Biden não deixa, porém, de defender o direito de escolha das mulheres no aborto, o que contraria a Igreja Católica. Já no que diz respeito à pena de morte, o novo presidente tem desenvolvido muito o seu pensamento desde os tempos em que era um senador convicto da sua utilidade para combater o crime e no mínimo não partilha o entusiasmo de Trump pelas execuções como método de justiça, o que se aproxima do abolicionismo a que os sucessivos papas apelam.
Crente, pois, e certamente com uma relação complexa com a fé devido às tragédias familiares que viveu, Biden será um católico presidente e não um presidente católico. A normalidade agora da sua eleição, depois dos traumatismos das campanhas de 1928 e 1960, poderá ter beneficiado da candidatura do democrata John Kerry em 2004, um católico também.
Primeiro candidato católico à presidência por um grande partido desde 1960, Kerry fez uma campanha normal, com a religião em plano secundário (falou-se mais até da mulher milionária, a portuguesa Teresa, viúva do magnata dos enlatados Heinz). A derrota para George W. Bush deveu-se, provavelmente, ao clima patriótico pós-atentados de 11 de setembro de 2001, que favoreceu o presidente em funções. Nem mesmo os grupos evangélicos mais avessos ao Papa conseguiram dessa vez, e agora também não, agitar as massas com a ameaça do anticristo. A América cada vez mais plural já não se amedronta com a diferença, mesmo que a maioria da população, e sobretudo as elites, ainda seja muito WASP, o acrónimo inglês para brancos protestantes anglo-saxónicos.
Curiosamente, se a presença de católicos na Casa Branca tardou, já no Supremo Tribunal a sua influência é evidente desde há uns anos. Basta pensar que seis dos nove juízes do equivalente ao nosso Tribunal Constitucional, incluindo dois dos três nomeados por Trump, professam o catolicismo.
Um Supremo Tribunal com membros vitalícios de matriz conservadora é certo, que influenciará a vida dos americanos ainda muito depois de Biden ter sido presidente (cumpra um ou dois mandatos), mas ao qual ninguém acusará hoje de ter um túnel até ao Vaticano.
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