Conselhos latinos para Joe Biden
As lições que a América Latina podem dar ao mundo, em especial aos países avançados, a respeito do manejo de crises econômicas
Moisés Naim, O Estado de S.Paulo
17 de maio de 2021 | 05h00
É fácil desdenhar das lições que a América Latina pode dar ao mundo a respeito do manejo de crises econômicas. Depois de tudo, o que pode ensinar uma região em que sempre há pelo menos uma economia atravessando severas turbulências? As crises são a norma. De fato, o principal problema da América Latina não é sua crônica instabilidade econômica, mas sim a incapacidade que seus dirigentes mostram para aprender com a experiência. E a sua propensão a se entusiasmar com políticas públicas que, já se sabe, sempre terminam mal. A necrofilia ideológica, o amor apaixonado por ideias mortas, reina entre os políticos e governantes da região.
Isto não significa, porém, que não há lições latino-americanas dignas de serem levadas em conta por países com economias avançadas. De fato, há alguns conselhos derivados da experiência da América Latina que o presidente Joe Biden e sua equipe deveriam levar em consideração.
O primeiro é não desrespeitar o déficit fiscal. A ideia de menosprezar o que acontece quando um governo gasta muito mais do que arrecada com impostos tem um grande histórico e é motivo de um acirrado debate acadêmico que não foi resolvido. Em 1932, John Maynard Keynes argumentou que as recessões econômicas podem ser tratadas aumentando substancialmente os gastos públicos. Em 2002, o então vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney, afirmou que “o déficit não importa”.
O debate segue vivo. Em 2020, a economista Stephanie Kelton publicou um livro intitulado El Mito del Déficit. Neste best-seller, a economista heterodoxa explica como a chamada Teoria Monetária Moderna sustenta que um governo que controla a sua moeda é capaz de aumentar a despesa pública tanto quanto quiser. Mais uma vez: o déficit fiscal não importa.
É óbvio que o presidente Biden decidiu apostar que, com efeito, o enorme aumento dos gastos públicos que ele decidiu fazer não será inflacionário. Ou que ter alguma inflação não seria grave. Ou que, em todo caso, esse aumento dos preços seria transitório. Além disso, caso torne-se muito elevada e prolongada, esta inflação pode ser reduzida com os instrumentos de política econômica à disposição do governo. Os economistas chamam isso de “fine tuning”, ou seja, o ajuste fino das variáveis econômicas a fim de “arrefecer” uma economia “superaquecida” pelo aumento das despesas governamentais.
Mas os defensores da despesa deficitária argumentam que o mais importante é que, nas economias avançadas, a inflação deixou de ser um problema. Há várias décadas, aqueles que preveem surtos inflacionários prejudiciais nos EUA ou na Europa se mostram enganados. Assim fica muito fácil ridicularizar os economistas que há anos vêm anunciando explosões inflacionistas que nunca ocorrem.
Todas estas explicações que buscam mostrar a inflação como um problema que não existe têm sido repetidas até a exaustão por presidentes latino-americanos que têm aumentado desenfreadamente a despesa pública, quase sempre com resultados desastrosos. Acontece que, nestes países, o déficit tem sido importante. E muito. A moeda é desvalorizada, o endividamento aumenta, os capitais fogem, o investimento cai e, claro, a inflação aumenta junto com seus efeitos devastadores sobre quem tem menos. Estados Unidos e outros países desenvolvidos têm condições e instituições que os fazem menos vulneráveis a estes males. Mas eles não são imunes. A complacência que advém desta tolerância à inflação é perigosa.
Na experiência da América Latina, uma vez enraizada na economia (em preços, contratos, salários, e nas expectativas das pessoas), a inflação é muito difícil de erradicar, o “fine tuning” da economia costuma falhar e os grandes aumentos da despesa pública encorajam o desperdício, a ineficiência e a corrupção.
É verdade que os países latino-americanos não controlam a sua moeda, enquanto que ter o dólar como referência abre possibilidades para os EUA que outros países não têm diante de si. Mas mesmo assim, o medo da inflação já pode ser sentido nos Estados Unidos. Um levantamento da revista Fortune revelou que 87% dos adultos dos EUA estão preocupados com a inflação.
Larry Summers e Olivier Blanchard, dois dos economistas mais respeitados do mundo, acreditam que o pacote de despesas de Biden será inflacionário. Investidores privados estão modificando as suas carteiras para torná-las menos vulneráveis à inflação.
Quando defensores entusiastas da despesa deficitária como Paul Krugman começam a tomar precauções, é hora de prestar atenção à experiência latino-americana. O influente laureado com o Nobel acabou de escrever que, embora não pense que a inflação será um problema, “isto não significa que tudo esteja bem com o programa econômico de Biden. Pode de fato revelar-se demasiado ambicioso”.
Quando a economia de um país latino-americano se desestabiliza, o seu povo paga as consequências. Quando a maior economia do mundo se desestabiliza, todos nós pagamos o preço. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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