O cenário internacional passou por transformações importantes na última década. Se antes atuava discretamente, a China passou a assumir uma postura mais assertiva no ordenamento mundial. A inovação tecnológica é elemento fundamental na continuidade do processo de desenvolvimento do país e a meta é transformá-lo na maior potência tecnológica global até a segunda metade do século 21. Tal anseio se reflete nas relações da China com o mundo: a caminhada para a supremacia tecnológica do Império do Meio é vista como ameaça por alguns de seus vizinhos asiáticos e por países ocidentais.
A ascensão da China, seu avanço tecnológico e a resposta cada vez mais agressiva por parte dos Estados Unidos tornaram central a rivalidade entre as duas potências. Uma das mais visíveis disputas tem se dado em torno dos padrões tecnológicos da quinta geração de internet móvel, o 5G, cujas possibilidades de novos serviços online, comunicação entre diversos dispositivos, coleta e transmissão de grande quantidade de dados, além de conexões mais rápidas e estáveis, poderão ter grande impacto econômico, social e cultural, por serem a base da 4ª Revolução Industrial (conhecida como Indústria 4.0).
A maior confiabilidade e a redução da latência —tempo de execução entre o comando e a ação— podem possibilitar o surgimento de um mundo muito mais conectado, impulsionando a criação de veículos autônomos, fábricas e cidades inteligentes, e até mesmo avanços na produção agrícola. A Huawei criou, por exemplo, uma solução chamada Connected Cows, cujos sensores colocados em vacas são capazes de monitorar os melhores momentos para a produção de leite e informar o local de ordenha, gerando ganhos de qualidade e produção. A redução da latência já tem possibilitado que procedimentos médicos sejam realizados de forma remota, ou seja, médicos chineses podem executar uma cirurgia com o paciente a milhares de quilômetros de distância com o auxílio da tecnologia 5G.
A mudança da percepção estadunidense em relação à China ocorreu após a crise de 2008. Os reflexos da crise foram mais brandos no país, como resultado de estímulos governamentais que evitaram que a economia global entrasse em profunda recessão. O êxito levou a China a assumir um novo papel no cenário global em termos comerciais e financeiros. Desde então, seu protagonismo deu origem a pequenas reformas no arranjo internacional orquestrado a partir do fim da Guerra Fria, com a criação de instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura e a Iniciativa Cinturão e Rota. Essas novas instituições surgiram exatamente em um período de contestação do multilateralismo e de limitação da capacidade de organizações idealizadas pelo Ocidente, como a Organização das Nações Unidas (ONU)e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de acomodar a ascensão chinesa e as demandas de outros países em desenvolvimento, como o próprio Brasil.
Apesar de se tornar um desafio para a manutenção da hegemonia estadunidense, a relação de interdependência entre China e Estados Unidos dificulta o “desacoplamento”, ou seja, um rompimento mais profundo entre os dois países, especialmente no campo tecnológico. Essa interdependência tem sido enfrentada com ações para diminuir a presença chinesa em tecnologias de duplo uso (civil e militar) e por meio da pressão norte-americana para que países não utilizem tecnologias desenvolvidas por empresas chinesas. O desejo de desacoplamento, nesse sentido, por vezes força nações a terem que escolher um lado da disputa.
Por exemplo, sob o pretexto de violação da privacidade dos cidadãos, espionagem e roubo de dados, o governo de Donald Trump (2017-2020) pressionou, com sucesso, países como Austrália, Reino Unido, Japão, Índia e Coreia do Sul, com o objetivo de que restringissem a presença da Huawei em suas infraestruturas de telecomunicações.
No Brasil, somaram-se declarações de autoridades do governo dos Estados Unidos sobre os supostos efeitos negativos da presença da Huawei no 5G brasileiro. Os Estados Unidos criaram inclusive um plano, chamado Clean Network, reunindo países que queiram escapar da “vigilância mundial chinesa” a fim de impedir a atuação de empresas como a Huawei em setores estratégicos. Os Estados Unidos declararam que o Brasil era parte fundamental da Clean Network e ofereceram empréstimos caracterizados como de segurança nacional para que o país pudesse construir uma rede confiável (neste caso, sem a Huawei).
A declaração de maior repercussão foi proferida pelo Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Todd Chapman, que asseverou que o Brasil não sofreria represálias caso permitisse a participação da Huawei no 5G, mas que tal ação teria consequências para o país. O tom de ameaça repercutiu e provocou reação da China. O embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, acusou os Estados Unidos de cercearem empresas chinesas para manter sua supremacia em tecnologias de ponta, destacando que os desdobramentos da disputa pelo 5G definiriam o futuro das relações Brasil-China.
A pressão dos Estados Unidos passou a ser um constrangimento para a política externa brasileira, que teve dificuldades de formular uma posição diante da fragmentação interna que se originou durante a discussão sobre a tecnologia 5G: de um lado, o Itamaraty seguia um alinhamento diplomático com o governo de Donald Trump, e, de outro, havia grupos de interesse que objetivavam manter boas relações com a China. O alinhamento da política externa comandada por Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro até março de 2021, significou a assimilação das diretrizes do governo Trump sem que os interesses brasileiros fossem considerados, produzindo contradições ao adentrar numa guerra comercial e tecnológica com a China, nosso principal parceiro comercial.
As relações Brasil-China passaram a ser ameaçadas pela postura conflitiva em temas de comércio, tecnologia, e posteriormente, pelas acusações de caráter conspiratório sobre a pandemia, que foi elemento importante na radicalização do discurso do governo brasileiro em relação à China. O cenário foi de alinhamento completo aos interesses dos Estados Unidos, com a retórica evoluindo ao nível de ofensas xenofóbicas propagadas por autoridades brasileiras. Essa postura foi contraposta por interesses de grupos internos que são mais diretamente atingidos pelos abalos nas relações sino-brasileiras, especialmente os setores agrícola, energético e extrativista, temendo prejuízos para as nossas exportações. No caso do 5G, os esforços desses grupos para que a questão fosse tratada de maneira técnica falharam. Iniciou-se então uma ofensiva do Brasil contra o seu principal parceiro.
A contradição da postura do governo de Jair Bolsonaro em relação aos interesses do Brasil foi tão evidente que criou conflitos até mesmo com parte da base de apoio do governo, em particular com setores exportadores de recursos naturais e produtos agrícolas. Há ainda a pressão do setor de telecomunicações, cujas operadoras rejeitam qualquer proibição à Huawei, por utilizarem amplamente os equipamentos da empresa e pela elevação dos custos decorrentes dessa possível decisão governamental, que criaria a necessidade de troca de equipamentos existentes e a negociação com novos fornecedores, já que a Huawei atua no Brasil desde a década de 1990.
Com a publicação do edital das regras de implementação do 5G, ficou claro que o desarranjo político interno somado às pressões dos Estados Unidos resultou em uma política contraditória em relação ao tema: ao mesmo tempo em que o Brasil manteve a possibilidade de participação da Huawei em aberto, criou mecanismos que podem ser acionados para limitar a sua atuação, como a criação de uma rede exclusiva para a administração federal e a exigência de que os fornecedores sigam as regras de governança do mercado acionário brasileiro, o que favorece as concorrentes Nokia e Ericsson.
O desarranjo e o descolamento da realidade, característicos da política externa de Ernesto Araújo, resultaram em conflitos que tumultuaram as relações Brasil-China. Ao colocar os Estados Unidos e a China como simples antagonistas, a política externa brasileira não levou em conta as complexidades do sistema internacional. Trata-se de relações políticas e econômicas de alto grau de interdependência, com muitas convergências entre pontos de enfrentamento e rivalidade. Esse cenário abre espaço para que o Brasil possa barganhar com ambos os lados, em vez de fazer escolhas equivocadas.
A política externa brasileira não é um jogo de soma zero. As relações do Brasil com as grandes potências devem necessariamente priorizar os interesses nacionais. Portanto, um processo de construção de uma política externa pós-bolsonarista deverá resgatar uma posição que desenhe parcerias, com países desenvolvidos e em desenvolvimento, de maneira pragmática e autônoma.
*Rafael Almeida Ferreira Abrão é Doutorando em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador do International Institute for Asian Studies (IIAS). (contato: ra.abrao@gmail.com)
Agradecimentos: As reflexões contidas nesse artigo não seriam possíveis sem os comentários da Prof.ª Marina Gusmão de Mendonça, da participação do autor no Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil e de ponderações contidas no debate promovido pelo Instituto Diplomacia para Democracia, com participação dos professores Ana Tereza Marra, Cristina Soreanu Pecequilo e Marcos Cordeiro Pires.
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