O Acordo Comercial EUA-China e a retórica semântica americana
Não obstante a “guerra comercial” entre os EUA e a China, as infindáveis “listas negras” de empresas chinesas nos EUA, o discurso anti-China da nova Administração Biden e a barragem de críticas do governo americano ao Acordo Abrangente sobre Investimento UE-China celebrado no final de 2020, a verdade é que os EUA e a China celebraram em inícios de 2020, e mantêm em vigor, um Acordo Comercial, denominado como sendo a “Fase 1”, i.e., que se destina a ser aprofundado em fases subsequentes.
Este Acordo Comercial EUA-China é tão complexo e amplo como o Acordo Abrangente sobre Investimento UE-China e inclui, em linha com a narrativa então prevalecente nos EUA, uma obrigação de compra pela China de grandes quantidades de produtos americanos.
Lendo as notícias internacionais, dir-se-ia que a crescente deterioração das relações a vários níveis entre os EUA – a única superpotência atual – e a China – a maior das novas potências emergentes – impediria a existência de um tal Acordo Comercial. Mas não só não impediu, como o Acordo Comercial não foi denunciado, como se mantêm em curso negociações tendentes ao seu aprofundamento. Por detrás do manto diáfano da retórica oficial americana sobre um “novo consenso sobre a China” – implicando uma diabolização global da China na razão direta da sua crescente projeção internacional – existe uma política pragmática de responsáveis políticos americanos com a cabeça fria que constatam a dificuldade em ter uma política americana consistente para além de um consenso geral interno de “get tough on China”.
As elites e think tanks americanos sabem bem que a atual guerra comercial não mudará praticamente nada e querem pôr-lhe fim; mas têm bem presente a dificuldade política interna de manter alguma constância de rumo e de articular interesses contraditórios – as empresas americanas querem ter acesso ao enorme mercado da China Urbana mas os dirigentes americanos projetaram tanto o país como evangelista da democracia e dos direitos civis e políticos que ficaram reféns desse discurso (com exceções ocasionais quando está em causa o acesso a fontes de energia ou considerações geo-estratégicas que podem pôr em causa a pax americana). E quer as elites quer os responsáveis políticos sabem bem que no mundo multipolar em que nos encontramos e nas relações internacionais atuais, a interdependência económica é irreversível e amiúde necessária; p. ex., o financiamento dos ambiciosos planos de investimentos em infraestruturas, sociais e militares da Administração Biden requerem que não haja hesitação por parte dos principais tomadores de Obrigações do Tesouro dos EUA (a China é o segundo com c. 15% do total), sob pena de os seus juros subirem e arrastarem o das obrigações emitidas pelas empresas americanas, arrefecendo o ritmo do crescimento económico pós-pandemia.
E de facto é improvável que a China reduza a compra de grande quantidade das Obrigações do Tesouro dos EUA.
Em suma, a retórica americana confrontacionista relativamente à China serve para neutralizar a matéria no debate político doméstico e na cultura tabloide americana; mas, se quisermos perceber a verdadeira política dos EUA devemos seguir de perto as negociações em torno do Acordo Comercial EUA-China.
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