Quase dois anos após retirada ‘oficial’, militares americanos continuam na Síria.
Revisão da política para o país árabe determinada por Biden poderá aumentar contingente, mas analistas consideram que possibilidade é perigosa para a estabilidade regional.
Nos últimos dias de junho, um grupo de militares americanos foi alvo de um ataque de milícias pró-Irã no Noroeste da Síria, horas depois de o presidente Joe Biden ordenar ataques aéreos contra grupos semelhantes em território sírio e no vizinho Iraque.
Mais do que ressaltar os crescentes embates envolvendo os EUA e milícias apoiadas por Teerã, o incidente trouxe à tona uma das posições menos claras do atual governo americano: a política para a Síria, quase dois anos depois do anúncio da retirada oficial dos soldados pelo então presidente Donald Trump.
Oficialmente, não há números sobre quantos militares dos EUA ainda estão no país árabe, remanescentes da intervenção liderada pelo então presidente Barack Obama (2009-2017) para amparar as Forças Democráticas da Síria (FDS) contra o EI, em 2014.
Esse papel foi crucial, ao lado da ofensiva do governo sírio com o apoio da Rússia, para retomar posições dos extremistas e enfraquecer o grupo, responsável por violentos atentados em Europa, Ásia, África e Oriente Médio. Entre os feitos, está o ataque aéreo que matou o líder do EI, Abu Bakr al-Baghadi, em outubro de 2019. Os militares americanos não se envolveram, pelo menos oficialmente, nos combates com as forças aliadas de Bashar al-Assad na longa guerra civil síria.
Ainda em outubro de 2019, pouco antes de uma incursão da Turquia em áreas controladas pelas FDS, majoritariamente formadas por curdos vistos como terroristas por Ancara, Trump anunciou a retirada da maior parte de suas forças do Noroeste da Síria, mas manteve algumas tropas nos arredores de campos de gás e petróleo.
Apesar de assessores militares declararem que essas forças serviriam como apoio para eventuais combates contra o Estado Islâmico, Trump foi enfático ao definir qual era, para ele, a missão central.
— Vamos manter o petróleo. Temos o petróleo. O petróleo está seguro. Deixamos os militares para trás apenas pelo petróleo — disse o então presidente, ao lado do líder turco, Recep Tayyip Erdogan, no dia 13 de novembro de 2019.
Segundo estimativas, há cerca de 900 militares ao redor de duas instalações, Green Village e Conoco, perto de Deir Ezzor, onde os combates ainda são rotineiros. Mais do que aspectos econômicos, essa permanência tem uma função estratégica — uma retirada às pressas poderia ser um golpe fatal para as FDS, com consequências potencialmente danosas.
— Os EUA sabem que se eles saírem dali, abrem caminho para uma eventual volta do EI, que precisa de riquezas que possam ser comercializadas, e uma área rica em gás natural é muito estratégica — disse ao GLOBO Tanguy Baghdadi, professor de política internacional da Universidade Veiga de Almeida (UVA). — Vamos dizer que o EI não consiga tomar conta dessa região, nenhuma das outras opções é boa para os EUA: seriam o Irã ou a própria Síria, que traria também a Rússia.
Questões amplas
No momento, o governo Biden realiza uma revisão das políticas para a Síria, e integrantes de seu Gabinete, incluindo o secretário de Estado, Antony Blinken, declararam que posições adotadas pelos últimos dois presidentes permitiram a vitória militar de Bashar al-Assad na guerra civil, além da consolidação da presença russa e iraniana. Contudo, não há uma data para que a revisão seja apresentada.
— O governo Biden está tentando retornar ao acordo sobre o programa nuclear iraniano, que demanda maior flexibilidade sobre a Síria. Também está reavaliando a eficácia e impacto das sanções e o papel do presidente Erdogan na área — disse ao GLOBO Joshua Landis, chefe do Centro de Estudos do Oriente Médio da Universidade de Oklahoma. — Isso significa que o presidente Biden ainda não articulou uma política clara para a Síria, nem deu ao país uma posição de destaque na política para o Oriente Médio.
Mesmo longe da lista de prioridades americanas, que também incluem a retirada das tropas americanas do Afeganistão depois de duas décadas, ou a mudança de foco da Casa Branca do Oriente Médio para a Ásia, a Síria ainda influencia algumas das decisões imediatas da diplomacia americana, incluindo sobre o próprio Irã.
Washington pressiona para que a questão das milícias pró-Teerã na Síria — como as que atacaram as tropas no mês passado ou que atuam no vizinho Iraque — seja incluída nas negociações para a retomada do acordo nuclear abandonado por Trump, seja agora ou futuramente, no caso de sucesso nas conversas. Ao mesmo tempo, repete o republicano nos bombardeios contra grupos armados na região: foram dois desde que o democrata chegou ao poder. Em todos os casos, as ações foram justificadas como respostas a “provocações” e recebidas com indignação em Damasco.
— Os EUA se veem em uma posição muito complicada. Estão sendo atacados e, ao mesmo tempo, não podem demonstrar fraqueza, ao ponto de não reconhecerem o fato de terem sido atacados — pontuou Baghdadi, se referindo às declarações do Pentágono negando os ataques contra as posições dos EUA em território sírio, mesmo com amplas evidências de que ele, de fato, ocorreu. — Talvez seja esse o maior desafio de política externa do governo Biden, ele não envolve uma decisão boa, em qualquer cenário ele se encontra entre a cruz e a espada.
De acordo com diplomatas, a revisão da política americana para a Síria poderá recomendar um aumento das tropas em solo sírio, destinadas a proteger posições da SDF e potencialmente de outros grupos de oposição a Assad. Isso poderia ser, para Baghdadi, mais um elemento de desestabilização.
— Acredito que se os EUA optarem por um reforço militar, teremos mais ataques como os recentes — afirmou. — O país precisa ter consciência de que se trata de uma nova invasão, cujos resultados são desconhecidos. Veja o caso do Afeganistão, acharam que ficariam dois anos mas hoje saem quase duas décadas depois. Mas sendo uma grande potência, você precisa tomar decisões complicadas.
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