The US: Stuck with Worst Post-9/11 Legacy*

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Os EUA presos ao seu pior legado pós-11 de Setembro

Joe Biden tenta encontrar um caminho para fechar a prisão de Guantánamo, mas esbarra em obstáculos políticos

“Acho que vamos retomar a audiência em outubro e espero que acabemos com isso. Sua vida vai poder prosseguir a partir de então, ok, Mr. Khan?”, disse o juiz, um militar da aeronáutica. Naquela tarde de 27 de julho, o paquistanês Majid Khan participava de mais uma das várias sessões para decidir seu futuro. De terno e camisa pretos, gravata cinza e cabelo recém-cortado, ele cruzou então a sala até o lado direito, onde sentavam os promotores. Estendeu a mão para seu principal acusador, coronel Walter Foster, e, em pé, conversou amigavelmente por seis minutos com os militares que representam o governo que o torturou por anos. Se o presidente americano, Joe Biden, cumprir a promessa frustrada por Barack Obama, de esvaziar a prisão de Guantánamo, Majid Khan pode em breve dar adeus à base americana lembrada pelas gaiolas a céu aberto e presos de macacão laranja, onde está confinado desde 2006.

Os Estados Unidos chegam ao aniversário de 20 anos dos atentatos de 11 de setembro com a prisão de Guantánamo aberta, presos sem acusação formal e julgamentos intermináveis à margem da lei americana. Sem oferecer respostas legais aos acusados pela arquitetura do ataque às Torres Gêmeas, nem responsabilizações pelos atos de tortura do próprio governo, a prisão criada por George W. Bush para trancafiar terroristas é uma herança incômoda da “Guerra ao Terror”, que Biden promete enfrentar.

A reportagem do Estadão passou quatro dias na base naval da baía de Guantánamo em julho, para acompanhar as sessões da comissão militar que analisa o caso de Majid Khan. Ali, é raro achar presos que foram acusados formalmente por um crime. Mais difícil ainda que um julgamento chegue ao fim. Cerca de 780 passaram pelo presídio. A maioria foi transferida para outros países ainda nos governos Bush e Obama. Trump autorizou a saída de apenas um detento.

O primeiro sinal de que Biden pretende colocar em prática a proposta de fechar Guantánamo foi dado em julho, quando seu governo retomou as transferências e enviou Abdul Latif Nasir para o Marrocos. O caso já estava maduro desde o governo Obama. “Aqui estamos, no fim do sétimo mês do governo Biden, e não há progresso substancial para o fechamento”, disse Wells Dixon, advogado de defesa de Khan, a repórteres protegidos pelo sol forte embaixo de um galpão de Guantánamo.

A saída dos EUA do Afeganistão pressiona o presidente americano a resolver a situação de Guantánamo. Pelas Convenções de Genebra — que foram desprezadas pelos americanos durante parte do governo Bush — prisioneiros de guerra precisam ser liberados quando o combate termina, a menos que estejam respondendo criminalmente pelos atos.

Dos 39 ainda detidos na base americana, só dois foram condenados. Khan é um deles. A maior parte nunca foi sequer acusada. São chamados na imprensa americana de “prisioneiros eternos”. Dez já podem ser transferidos para outros países — o que exige negociação diplomática; 17 têm casos que devem ser revisados e outros dez estão à espera dos julgamentos das comissões militares.

“Guantánamo começou como um esforço para criar uma prisão fora da lei e isso é essencialmente o que continua após 20 anos. Os EUA mantêm pessoas sem acusações presas por duas décadas em uma guerra que agora o presidente diz que acabou, o que aumenta a aberração”, diz Jonathan Hafetz, especialista em direito criminal internacional da Seton Hall Law School e autor e editor de livros sobre Guantánamo.

Por outro lado, Biden pode pagar uma conta política cara se prisioneiros liberados durante seu mandato se juntarem ao Taleban. Fotos de ex-presos de Guantánamo que fizeram parte da ofensiva do Taleban para recuperar o controle de Cabul há duas semanas circulam na internet, especialmente em sites conservadores. Segundo a inteligência americana, 17% dos ex-presos de Guantánamo retomaram atividades terroristas — um número considerado inflado por críticos.

A partir desta terça-feira, 7, os cinco acusados pelo 11 de setembro devem passar pelas comissões militares para procedimentos administrativos. O mais conhecido do grupo é Khalid Shaik Mohammed, o KSM. Foi o mentor do ataque de 20 anos atrás que matou 2,977 pessoas em Nova York, Washington e Pensilvânia. Não há desfecho à vista.

Para fechar Guantánamo, Biden precisaria negociar a transferência diplomática de parte dos presos a outros países e colocar os poucos que respondem por crimes de guerra em julgamento nos tribunais americanos — algo que Obama tentou fazer, sem sucesso.

O próprio ex-presidente, no entanto, admite em seu livro de memórias lançado em 2020 que não usou todo seu capital político nesse esforço. “Sem dúvidas, era uma luta que valia a pena lutar. Mas na época nenhum de nós na Casa Branca achou que poderíamos ganhá-la”, escreveu Obama, sobre a ideia de levar os acusados pelo 11 de setembro a julgamento em uma corte de Nova York.

As comissões militares são descritas por Obama como um “sistema alternativo” no qual “prevalecem padrões mais baixos de evidência e salvaguardas processuais mais fracas”. Criadas sob Bush, foram consideradas ilegítimas pela Suprema Corte, mas recicladas pelo Congresso. Obama suspendeu os júris, mas depois os liberou novamente.

A situação de Majid Khan aponta que mesmo um governo democrata não está disposto a passar a limpo as violações de direitos humanos. Para garantir a sentença ainda em outubro, com possível fim da pena em fevereiro, ele colaborou com os americanos e abriu mão do pedido para trazer testemunhas que comprovem a tortura sofrida.

Khan cursou o ensino médio em Baltimore, ao lado da capital americana. Foi preso no Paquistão em 2003, para onde viajou depois do 11 de setembro. Ele confessou que arquitetou com KSM a ideia de explodir tanques de gasolina nos EUA, que concordou em agir como homem bomba para assassinar o presidente do Paquistão — o que não aconteceu — e admitiu que efetivamente serviu como mensageiro da Al-Qaeda e carregou US$ 50 mil para uma parte do grupo jihadista. O dinheiro serviu para financiar um atentado em 2003, em Jacarta, na Indonésia, que matou 11 pessoas e feriu outras 150. Por isso, foi acusado de conspiração, assassinato e tentativa de homicídio em violação da lei de guerra, fornecimento de suporte material para terrorismo e espionagem.

A audiência do paquistanês selou uma modificação no seu acordo de colaboração, assinado em 2012. Ele passou nove anos abastecendo os EUA com informação. Em troca, pedia uma compensação, com abatimento de pena, pela tortura sofrida. Em julho, decidiu recuar da ideia de trazer testemunhas que falem sobre a tortura.

“Parece muito claro que o governo americano não quer permitir que evidências de tortura sejam apresentadas em uma sessão de julgamento em Guantánamo”, afirma Wells Dixon, que questiona: Em casos que a acusação pede a pena de morte, como o dos envolvidos no 11 de setembro, qual seria o crédito caso o juiz entendesse que deve diminuir a punição em razão dos maus tratos?

A palavra tortura não é mencionada na sessão. As partes falam em “crédito pela punição pré-julgamento”. Uma parede de vidro separa a galeria onde ficam jornalistas, membros da sociedade civil e familiares. O som é transmitido com 40 segundos de atraso, para que informações sigilosas sejam censuradas se preciso. Nesse caso, a audiência escuta uma espécie de apito.

Há placas que lembram que “há câmeras em todos os cantos” da sala, não que seja preciso avisar. O local não pode sequer ser desenhado ou descrito com detalhes, segundo as orientações. Celulares e eletrônicos precisam ficar fora. Comida e bebida também não passam do primeiro controle de segurança, montado em uma tenda de lona, mas, como em quase todos os pontos de espera em Guantánamo, há uma máquina onde é possível comprar pepsi, cheetos e chocolates M&M.

Khan foi levado aos “black sites” da CIA, as prisões secretas mantidas pelos EUA em outros países, como o Afeganistão. Chegou em Guantánamo em 2006 e só em 2007 conseguiu autorização para falar com seu advogado. Por duas semanas, ele falou sem parar. Estava em péssimas condições de saúde física e mental.

Um relatório do Senado americano registra que ele foi submetido a várias das técnicas de tortura adotadas pela CIA na época: nudez, privação de sono, afogamento e alimentação forçada pelo reto, com a infusão de um purê que, no caso de Khan, continha homus, macarrão com molho, nozes e passas. Ele também teve o corpo e a cabeça imersos em uma banheira cheia de água e gelo. Nessa época, tentou cortar os próprios pulsos duas vezes. O governo Obama acabou oficialmente com as práticas.

“O programa de tortura não era como aparece na TV, certo? Não foram uns poucos desonestos da CIA que tiveram essa ideia terrível. Isso foi um esforço do governo inteiro. Foi um esforço do governo para, francamente, abandonar os princípios americanos e extrair informações por meio da tortura”, diz James Connell, advogado de Ammar al Baluchi, um dos cinco homens acusados de ajudar a planejar os ataques de 11 de setembro de 2001. Al Baluchi teve a cabeça esmagada contra a parede repetidamente e sofreu traumas cerebrais.

A visita a Guantánamo

A base naval de Guantánamo é dividida em quatro partes, cada uma com um comando diferente: a área da prisão, o campo de justiça — onde são os julgamentos, o hospital que atende os militares e o restante, onde estão os alojamentos, um pequeno mercado, uma rádio e alguns poucos restaurantes, inclusive um McDonald’s. Quase ninguém anda na rua. O “campo de justiça” foi montado para ser provisório, com banheiros químicos e tendas de lona cáqui para hospedar os visitantes. Como os julgamentos nunca terminam, a estrutura continua lá e parece deslocada no tempo.

Desde 2019, o governo americano não autoriza jornalistas a entrarem na prisão, como foi feito por muitos anos em um esforço de relações públicas. A pandemia serviu como justificativa para bloquear boa parte das viagens. Mas as sessões das comissões militares, que os jornalistas podem acompanhar, foram retomadas em julho. A de Majid Khan foi a segunda permitida desde o início de 2020.

Sete jornalistas dos 17 que pediram para participar da viagem embarcaram para Guantánamo: o Estadão, três repórteres de veículos europeus e três de veículos americanos. Uma lista extensa de documentos e informações pessoais e familiares é submetida ao Departamento de Defesa para a autorização de viagem dos repórteres, especialmente no caso de estrangeiros. Carros com as bagagens foram farejados por cachorros na chegada à base militar Andrews, usada pelo presidente dos EUA. Os protocolos para a viagem demoram mais do que o tempo de voo, de três horas.

Um Boeing 767 comercial alugado pelo governo americano levou as cerca de 80 pessoas que viajaram especialmente para a comissão militar de Khan. Jornalistas entram primeiro e são colocados no fundo, para restringir o acesso aos demais. Na sequência entram representantes de organizações da sociedade civil, advogados, procuradores, familiares de vítimas e, eventualmente, juiz e procuradores. Todos apresentaram testes de covid-19 e comprovante de vacinação para embarcar, o que não impediu que ao menos dois jornalistas do grupo fossem contaminados pelo coronavírus no período.

Um veterano dirige a balsa que leva de um ponto a outro da base ao som de música country. De um lado, Cuba. De outro, os 116 km2, ocupados pelos EUA em 1868 e cedidos por Cuba em 1903. O atual governo cubano rejeita os pagamentos de aluguel dos EUA por não reconhecer a legitimidade da base, apesar de americanos e cubanos se reunirem mensalmente na linha que separa os dois territórios, de forma cordial.

O comandante geral da base, Capitão Samuel White, é um dos que tentam convencer a opinião pública de que Guantánamo é mais do que uma prisão. “As pessoas veem o que querem ver. Às vezes, isso não corresponde à realidade”, disse, em 20 minutos de uma conversa com jornalistas em tom desafiador. “Vocês já estão por aqui há um tempo. Você olha em volta. Você vê um centro de detenção? Não, você não vê. O que você vê é uma Estação Naval, uma orgulhosa Estação Naval, cumprindo sua missão todos os dias, todos os dias.” A imprensa foi impedida de entrar na área do presídio.

Excessivamente sorridente, a porta-voz do comandante faz questão de dizer que a vida é boa por ali. Além das praias, diz, há atividades de lazer, como o boliche — que tem uma versão de “What a Wonderful World” na trilha da música ambiente. Uma loja de souvenirs tem itens que poderiam ser vendidos em qualquer praia do caribe: como uma camiseta do filme “O Rei Leão”, com a expressão “Hakuna Matata” escrita logo acima de “baía de guantánamo” e outras com “beach vibes” e “no bad days”. Qualquer compra aparece registrada no extrato de cartão de crédito como se tivesse sido realizada em Fort Lauderdale, na Flórida.

Repórteres não podem fotografar instalações de segurança, como cercas ou torres que permitem a supervisão de presos, e nem de infraestrutura — geradores de energia, estações de água ou armazenamento de combustível. Os celulares e câmeras são revisados ao fim da viagem, para que fotos com material considerado sensível pela segurança da base sejam deletadas. Com escolta redobrada, as equipes de reportagem puderam fazer fotos dos escombros do antigo Campo Raio-X, para onde os presos eram levados no início de Guantánamo. O local está desativado.

Visto todos os dias na cerimônia de hasteamento da bandeira ou fumando charutos fora de seu escritório, o que lhe rendeu o apelido de “Smokey”, o capitão White balbucia para si a resposta algumas vezes antes de falar em voz alta: ele nega que haja qualquer peculiaridade em assumir um posto como o de Guantánamo e diz que não pensa no que já aconteceu ali.

Diferentemente de Obama, Biden não determinou o fechamento da prisão em ordem executiva, não encampou uma briga pública e nem recriou cargos especificamente com essa tarefa. Os assessores de seu governo garantem que ele irá trabalhar silenciosamente, uma forma de não despertar a reação da classe política. “O governo Biden vai usar todos os recursos diplomáticos necessários para facilitar a transferência dos detentos elegíveis”, disse uma fonte do governo americano em teleconferência com jornalistas, em 19 de julho.

Segundo o jornal The New York Times, a prisão de Guantánamo custou US$ 540 milhões aos cofres públicos americanos em 2019 (ao redor de R$ 2,8 bilhões) – ou US$ 13 milhões por preso, um argumento usado pelo governo para sensibilizar os republicanos.

“Particularmente, não há muitas soluções para Guantánamo. Quantas pessoas sabem que Guantánamo ainda está aberta? E muito menos como resolver seus problemas. Há muito pouca vantagem política a ser obtida na tentativa de resolver Guantánamo”, diz James Connell. “Eu não estenderia uma guerra eterna”, disse Biden, na última terça-feira, ao justificar a saída do Afeganistão. Agora, ele precisará decidir se os EUA estão prontos para fechar uma prisão eterna.

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