Brasil-Estados Unidos: o que seria uma boa política externa brasileira?
As grandes assimetrias políticas, econômicas e militares condicionam as relações do Brasil com os Estados Unidos da América (EUA) e nossas estratégias de política externa desde o início do século XX. Por vezes, o Brasil adotou postura mais assertiva com vistas a barganhar melhores resultados em negociações com a potência ao Norte. Em outros momentos, predominaram iniciativas de aproximação e, até mesmo, de “alinhamento automático”, postura traduzida pela famosa frase proferida ainda no início da ditadura militar pelo político e embaixador brasileiro em Washington, Juracy Magalhães: “O que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”.
Nos últimos vinte anos, a política externa brasileira deslocou-se ao longo do espectro e adotou orientações divergentes. Entre 2003 e 2016, executou projeto de autonomia em relação à potência hegemônica global a partir da intensificação das suas ações políticas, comerciais e de cooperação técnica na América do Sul, África e sudeste asiático. Atuou também na construção de novas coalizões internacionais com outros países do chamado Sul Global, como os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o G20 Comercial e o Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), bem como na criação de espaços de concertação regional como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e na mobilização em favor da reforma de organismos multilaterais.
Contudo, no momento em que Michel Temer assumiu a presidência, em 2016, o Brasil abandonou a política “ativa e altiva”, se afastou do entorno regional e voltou a se aproximar da grande potência. Já no governo Bolsonaro, por sua vez, a continência à bandeira estadunidense foi acompanhada não apenas pela intensificação da subserviência nas relações, indicada, por exemplo, pelo alinhamento cada ver maior em termos de segurança e defesa, mas também pelo distanciamento em relação a princípios tradicionais da política externa brasileira, como a não interferência em assuntos internos e a manutenção de diálogo com nossos vizinhos, como se observa no caso venezuelano.
Essas estratégias bastante distintas de inserção internacional do Brasil estiveram no radar de tradicionais espaços sociais de debate, formulação e divulgação de política externa dos EUA, os chamados think tanks: organizações cujo objetivo é influenciar a formulação de políticas públicas e produzir recomendações específicas tanto ao setor público quanto ao setor privado estadunidense. Abrigando desde ex-presidentes, congressistas, grandes empresários, lobistas, acadêmicos e agentes das principais organizações internacionais, think tanks como o Council on Foreign Relations, a Brookings Institution, o Wilson Center ou a Heritage Foundation apresentam importantes elementos para compreendermos como os espaços sociais de decisão estadunidenses têm pensado o papel para o Brasil no século XXI e o que podemos esperar da grande potência quanto às nossas ações.
Em primeiro lugar, o ciclo de maior protagonismo regional e internacional brasileiro registrado na primeira década e meia forçou esse estrato da elite estadunidense a elaborar, de forma mais sistemática, concepções sobre a nossa inserção externa – algo incomum, apesar de se tratar das relações bilaterais entre as duas principais economias do continente. Em relatórios, livros, eventos, artigos para jornais e depoimentos nos Comitês de Relações Exteriores do Congresso estadunidense, havia preocupação fundamental quanto à posição de preponderância dos EUA, tida como natural. Buscava-se, por exemplo, emoldurar o Brasil nos termos de sua democracia ou do seu comprometimento com normas e propostas das organizações tradicionais, encaradas como simetricamente igualitárias e benéficas a todos os seus membros. Nesse sentido, mesmo naquelas atividades em que o Brasil era identificado como ator “responsável”, especialmente em ações na América Latina, na África e por meio do Ibas, destacava-se, em razão do seu comprometimento com “valores universais”, uma “permissão”, sob tutela, ao Brasil para promover, por exemplo, a integração regional ou estabelecer laços de cooperação técnica com países africanos.
No entanto, percebe-se uma demarcação crítica quanto à atuação internacional do Brasil quando as produções tratavam das agendas comumente chamadas de “primeiro nível” (por se tratar de questões de segurança internacional) ou que envolviam atores considerados como desafios ou ameaças à formulação de política dos Estados Unidos, tais como Rússia, China e Irã. Assim era, em boa medida, a produção sobre a atuação do Brasil, por exemplo, junto à China e à Rússia no contexto dos Brics, bem como na criação de mecanismos de diálogo e negociação sobre a questão nuclear com o Irã em alternativa ao formato P5+1 (Declaração de Teerã de 2010) ou então quando da abstenção/votação contra os interesses dos Estados Unidos no Conselho de Segurança das Nações Unidas nos casos envolvendo desenvolvimentos na Líbia e na Síria em 2011. A produção sobre a atuação do Brasil valia-se, em geral, de adjetivos como “imprudente” e “narcisista”, em referências críticas a posturas que destoavam dos interesses estadunidenses.
Ao observar a produção sobre o governo Bolsonaro, identifica-se que a postura de alinhamento adotada não foi correspondida. Percepções positivas a respeito do presidente e de sua agenda externa circunscrevem-se, nesses espaços, a pequena parcela de think tanks mais próximos à administração de Donald Trump, em especial a Heritage Foundation, e limitam-se a destacar a sua capacidade de pôr em prática políticas específicas. Essa parcela da elite estadunidense viu o alinhamento brasileiro com pragmatismo e oportunismo: sem esforço, foi possível avançar a agenda econômica neoliberal, contar com apoio brasileiro para promoção da mudança de regime na Venezuela e de conter a China na América Latina, claramente em benefício de interesses estadunidenses.
Até mesmo entre conservadores, no entanto, as produções mostram-se bastante críticas e praticamente consensuais quanto, por exemplo, à capacidade do governo brasileiro de manter os princípios e valores democráticos e de direitos humanos. Isso demarca diferenças significativas entre as declarações de apoio ao governo brasileiro oriundas da Casa Branca durante a gestão Trump e a apreciação de segmentos mais amplos do meio político e da opinião pública dos EUA. Outro elemento que merece destaque é que, diferentemente dos registros da década passada, em nenhum momento a produção atual atribuiu ao Brasil papel de protagonista ou de liderança internacional.
Sem surpresas, não é de se esperar dos Estados Unidos, mesmo no século XXI, aceitação de atuação de outros países fora dos clássicos pressupostos de subserviência colocadas ainda pela Doutrina Monroe, mais tarde reforçados no ambiente global pela estrutura delineada ao final da Segunda Guerra Mundial. Como é evidente, muitos dos anseios e objetivos da potência hegemônica não representam nossos interesses e necessidades.
Reerguer nossa política externa será decisivo para superarmos o acúmulo de mazelas econômicas, sociais e ambientais que o Brasil herdará da atual administração. Poderá haver, entretanto, reação contrária. Nesse sentido, além de nos prepararmos adequadamente, é importante repensar o relacionamento bilateral e nossa política externa a partir de demandas e soluções que resultem de diálogos entre segmentos sociais das sociedades brasileira e estadunidense, incluindo não apenas diplomatas, políticos e empresários, mas também representantes de movimentos sociais, de povos e comunidades tradicionais, entidades de classe e da academia. Também será essencial contrabalançar pressões estadunidenses fortalecendo a integração regional e mantendo relacionamento pragmático com outras potências como China, Rússia, Índia e os europeus. Isso contribuirá para que, em meio aos constrangimentos externos e assimetrias, o desenvolvimento econômico e social possa ocorrer em bases mais equilibradas, à altura das potencialidades e anseios da população brasileira.
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