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Imprensa dos EUA teve de criar algo antes impensável: a editoria de Democracia
Cobertura dos ‘desafios ao direito de votar, da gestão de eleições e da desinformação’ vira especialidade em Redações
Lúcia Guimarães
22.jun.2022 às 18h09
As audiências do comitê que investiga o 6 de Janeiro no Congresso americano são mais do que uma narrativa didática sobre a tentativa de golpe de Estado orquestrada por Donald Trump.
O bem produzido espetáculo de depoimentos interrompidos por vídeos e gráficos deixa ainda mais claro que a invasão do Capitólio foi um primeiro ato, não a conclusão de uma convulsão autoritária atípica.
As midterms, em novembro, anunciam-se como uma das eleições mais inseguras da memória recente, com legislativos estaduais tentando garantir que o fracasso em roubar o pleito de 2020 não se repita.
A mídia dos EUA, cujo fracasso em expor o perigo representado por um playboy candidato com décadas de currículo empresarial sujo em Nova York e a obsessão com e-mails de Hillary Clinton são um capítulo lastimável na história da imprensa livre, parece estar emergindo da credulidade que custou tão caro.
Em ao menos duas grandes Redações americanas, uma nova editoria se juntará às tradicionais, como Economia ou Esportes. É a editoria de Democracia, algo inimaginável aqui há dez anos. O time de repórteres alistado para cobrir as eleições deste ano no New York Times foi descrito pelo principal jornal de língua inglesa como a “equipe de democracia.”
A agência Associated Press, a mais antiga e a maior do país, nomeou um editor de Democracia, o jornalista Tom Verdin, para cobrir “os desafios ao direito de votar, a gestão de eleições e a desinformação”.
No caso do New York Times, a mudança de tom é notável pelo poder de influência do jornal. Em março de 2017, com Trump recém-instalado na Casa Branca, o então editor-executivo Dean Baquet ridicularizou o novo e presciente slogan postado pelo concorrente Washington Post sob o título do jornal —”a democracia morre na escuridão”. “Soa como um filme do Batman”, disparou Baquet com sarcasmo.
O sucessor dele, Joe Kahn, acaba de reconhecer, numa entrevista à rádio pública americana, que não existe jornalismo independente numa sociedade que não é livre. Por isso, explicou, nós jornalistas não somos imparciais sobre o risco de o país perder a liberdade.
Os anos trumpanaros, nos EUA e no Brasil, com o original na Casa Branca e o clone subserviente e hoje apavorado no Planalto, expuseram tanto a fragilidade de sistemas democráticos que dependem de um consenso social, não só de leis, como a da imprensa livre, iludida com seu papel.
Vozes extremistas que apoiam o fascismo pelas urnas ganharam espaço em nome de se ouvir “dois lados”. O lado que age para promover golpe de Estado não precisa de poleiro editorial, precisa de algemas e processos limpos na Justiça. Propagar desinformação de quem quer o poder de aterrorizar parcelas da população não é objetividade, é lavar as mãos da demolição em curso.
O impacto histórico da comissão do 6 de Janeiro não deve ser totalmente conhecido neste ano nas urnas ou na eleição presidencial de 2024. Para ter efeito benéfico no futuro, a comissão precisa expor o que a imprensa política demorou tanto a admitir: Trump aconteceu porque o sistema estava apodrecendo.
Ele foi o furúnculo visível. A bactéria já vinha infectando o corpo da política americana havia décadas.
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