Na terça-feira, dia 7, no seu primeiro discurso sobre o “Estado da Nação” desde que os Democratas perderam a maioria na Câmara dos Representantes, o Presidente traçou as linhas do seu plano para a América do século XXI, que já vinha a tentar montar desde Janeiro de 2021.
Os Estados Unidos podem ser um país cheio de problemas sociais, ter um modelo económico desgastante e arvorarem-se em defensores mundiais duma democracia plena que não praticam em casa; mas, enquanto não forem ultrapassados pela China — o que acontecerá não se sabe quando, ainda este século —, o que eles decidem tem efeitos globais.
E o que os Estados Unidos decidem, na pessoa do seu Presidente, é habitualmente programado de forma sucinta no tradicional discurso de abertura do Parlamento bicameral, chamado “O Estado da Nação”. Por isso, embora muita coisa dita já fosse possível de adivinhar e até esteja em andamento, o discurso programático do chefe do Executivo é ouvido com grande atenção e comentado até à exaustão, de Camberra aos Açores (que estão nos antípodas, por isso as escolhemos). Embora as propostas sejam sobretudo de âmbito nacional, o “efeito borboleta”, neste caso melhor chamado de “efeito águia”, provoca alterações na vida de toda a gente — e é muita gente, cerca de 7,868,872,451 de alminhas (em 1 de janeiro de 2023).
Os observadores amiúde dizem que Biden está velho demais, não tem a cabeça a 100%, gagueja e troca as palavras. Não interessa. Também Trump dizia disparates a torto e a direito e nem por isso o efeito do que dizia tinha menos importância.
E o que disse Biden, ou melhor, o que quer ele fazer? (Se os cerca de 50% de americanos que não gostam dele, encabeçados pelo ferozmente partidário e descaradamente aético Mitch McConnell, não o impedirem.)
Todos os jornais, revistas, websites e televisões comentaram o discurso. Lemos muitos deles, mas escolhemos o “The Economist” e o “The New York Times” como principais referências.
Desde que foi empossado, Biden assinou três decretos-lei sobre infraestrutura, semicondutores e ecologia que somam dois trilhões de dólares. As intenções são múltiplas: reindustrializar o país, reforçar a segurança nacional, revitalizar as regiões esquecidas, animar os trabalhadores e reduzir as emissões de carbono, tudo ao mesmo tempo. São objectivos que envolvem muitas contradições, como por exemplo reforçar a produção nacional para contrariar a China e simultaneamente manter uma relação não-conflituosa com os chineses. Ou então não hostilizar as todas-poderosas petrolíferas e aumentar a produção de electricidade verde. Ou ainda baixar a bola dos bilionários gananciosos e dar melhores condições ao trabalhadores. Mas a política é isso mesmo, a arte de conciliar os inconciliáveis.
A outro nível, o político, o presidente precisa de se entender com a oposição, que não quer entendimentos. McConnell já disse com todas as letras que o seu objectivo não é melhorar o país, mas sim travar o Governo (“Administração”, como eles lhe chamam.)
Se Biden conseguir o que quer, pelo menos parcialmente, será a maior mudança na política interna americana desde Ronald Reagan. A Lei das Infraestruturas prevê 1,2 trilhões de dólares para reconstruir estradas, pontes e cabos para uma nova “grelha verde”. A Lei dos Semicondutores destina 280 mil milhões para o fabrico de chips nos Estados Unidos. A chamada Lei de Redução da Inflação inclui 400 mil milhões de subsídios (há quem ache que custará o dobro) para a tecnologia verde nos próximos dez anos. Além das despesas, há incontáveis pormenores burocráticos a ultrapassar e muito depende de como os participantes (empresas e empregados) seguirão os trâmites, tentarão fazer lobby contra ou simplesmente arrastarão os pés.
Há também a questão da falta de operários especializados nas novas tecnologias e o facto de que muita produção já não exige operários; os produtos são feitos por robôs.
Algumas coisas levam tempo; é preciso importar equipamentos enquanto eles não são feitos em casa, para depois o taxar quando já haja produção doméstica, o que pode irritar os países exportadores e levá-los a não colaborar. E algumas tecnologias, como os painéis solares, serão sempre mais baratos importados do que feitos domesticamente.
A balança de pagamentos do país de 2022 foi a mais deficitária desde 1970 — trocando por miúdos, isto quer dizer que o país importou mais e exportou mais, mas sempre a seu desfavor. Não se vê como esta tendência possa ser invertida a curto prazo.
A inflação também é um problema que precisa de maior controle para estes dados baterem certos. Mas a inflação tende a aumentar quando há mais actividade económica e o país ainda não recuperou da inflação provocada pela pandemia, que tornou muitos bens escassos — logo mais caros.
Finalmente, há o obstáculo de os Estados Unidos serem precisamente isso, 50 Estados com leis diferentes. É preciso criar leis federais e torná-las mais blindadas às leis estatais, o que requer muitas negociações e nem sempre é possível.
Certas deficiências do sistema de saúde também precisam de ser corrigidas, não se sabe como. Para já, não há um sistema de saúde, ao contrário das outras economias industriais. A grande maioria da saúde é privada, tem um lobby poderoso e não está disposta a concessões. Isso nota-se particularmente no preço dos medicamentos, que não é regulado. A tal Lei de Redução da Inflação prevê que haja limites para o preço dos medicamentos, mas, à falta da possibilidade de um limite nacional (como na Europa) será preciso negociar caso a caso.
Não há dúvidas que os Estados Unidos estão em vias de grandes modificações, muitas das quais já aconteceram na Europa nas últimas décadas. Também não há dúvidas que o discurso de Biden peca por optimismo, uma vez que muitos dos seus objectivos exigem longas negociações e têm a hostilidade dos republicanos, que há muito — desde o speaker Newt Gingrich, na década de 1990 — decidiram que o principal interesse é o partido, não o país.
A pergunta seguinte é se Biden se candidatará de novo, em 2024, e se ganhará, para poder prosseguir com este programa.
Actualmente está com 80 anos e, embora não pareça inválido, também não parece com energia para mais seis anos de governação. Os republicanos, se não se apresentarem às eleições com Trump, o que parece cada vez menos provável, vão escolher o actual Governador da Califórnia, Ron DeSantis, que é um animal ainda mais feroz e certamente não está interessado em energia verde e outras mariquices.
Enquanto isto, o mundo aguarda. É o destino, termos de nos preocupar com o que se passa no nosso país e também com as ocorrências nos países que realmente podem impactar o nosso.
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