The Strange Case of George Santos*

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Todos mentimos. Umas duas vezes por dia. Dizem especialistas na matéria. E temos por assente que os políticos mentem por ossos do ofício. E que Trump trouxe para a política os “factos alternativos”, uma maneira de falsificar verdades. Mas a coisa não acabou por aí. Com a recente eleição de um congressista republicano, de seu nome George Santos, há todo um mundo de possibilidades que se abre para a definitiva morte da ética e da vergonha e para o início da cara de pau como modo de estar na vida pública. E já se sabe: o que os americanos inventam, mais dia menos dia, chega cá. O tal Santos era um perfeito desconhecido do qual se descobriu que nada do que “vendeu” de si ao seu eleitorado, enquanto príncipe perfeito, é real. Foi eleito para um cargo de congressista e aparentemente não irá sofrer consequências por ter contrafeito toda a sua vida.

As histórias das mentiras de George Santos são difíceis de acompanhar. Vejamos. Mentiu quanto às universidades que teria frequentado — e, obviamente, nunca foi campeão de voleibol numa delas. Mentiu quanto à carreira de sucesso que era suposto ter tido em Wall Street. Mentiu quanto a ter trabalhado na Goldman Sachs e no City Group. Mentiu quanto às origens familiares, pois teve a lata de afirmar que os avós tinham escapado do Holocausto (o seu eleitorado era essencialmente judeu) — é brasileiro e sem qualquer ligação judaica. Disse que a mãe escapara do 11 de Setembro e que morrera de um cancro relacionado com o caso — a mãe nem estava nos EUA em 2001. Embora se tenha assumido como gay, não disse que tinha sido casado com uma mulher nem que tinha sido drag queen no Brasil — e nada disto bate certo com o ter-se alinhado com políticas anti-LGBT da Florida. Santos teve o desplante de fundar obras de caridade para cães, nomeadamente uma para pagar as contas do veterinário do cão de um veterano de guerra — o dinheiro nunca chegou a sair do bolso de George Santos e o bicho morreu. Por ter sido um lugar roubado a um democrata, o Partido Republicano considera que as pessoas o elegeram livremente e que, por isso, tem legitimidade para ficar. Mas votaram em quem precisamente? Analistas políticos norte-americanos garantem que, historicamente, este é um caso nunca visto. E um precedente perigoso se não tiver consequências, se George Santos, seja lá ele quem for, puder cumprir o seu mandato de congressista. E parece que vai cumprir.

Passo os olhos por vários estudos, e há aqui um citado pelo “The Health Journal” em que me garantem que um homem diz cerca de 109 mil mentiras durante a vida enquanto uma mulher se fica pelas 65 mil. Olha aqui uma palestra TED que revela que num dia nos mentem entre 10 a 200 vezes, sendo que a maior parte das vezes não ligamos nem queremos saber! E vejo outro estudo: os maiores “alvos” de mentiras são os pais e os segundos são “os amigos”. As mulheres são especialistas em “meias verdades”. E na minha mão tenho o ensaio de Juan Jacinto Muñoz Rengel, “Una historia de la mentira” (2021), que descobri porque foi recentemente lançado no mercado norte-americano, que nos quer convencer de que a mentira é a base de toda a civilização, do mito a Deus, da guerra à política e à economia, do amor à morte. Mas não precisava de ser tão profundo. No filme de 1997 “O Mentiroso Compulsivo”, com Jim Carrey, constata-se o resultado de um advogado mentiroso que é “condenado” a dizer a verdade por um dia. A mentira não é só a mistela mitómana que mantém as roldanas da sociedade oleada. Segundo Muñoz Rengel, a mentira é o próprio tecido da sociedade. Mas onde se coloca um George Santos, mentiroso compulsivo, como legislador numa sociedade para a qual há duas décadas olhávamos como tão pudica e em que uma mentira sobre se tinha ou não tido um affair arruinava uma candidatura presidencial?

A ciência sugere que temos interligações mentais propositadas para nos deixarmos iludir, para mentirmos a nós próprios e para recusarmos, por exemplo, mudar de opinião, mesmo quando vemos que estamos errados. Mas veja-se o caso dos britânicos e do ‘Brexit’: eles estão a mudar de ideias, segundo as últimas sondagens. E dizem-se enganados por mentiras. É possível mudar opiniões políticas de trincheira, aceitar que se foi aldrabado — ao contrário do que se alegava. E, sim, diariamente mentimos, mas muitas vezes para “nos safarmos”, ou para evitarmos confrontos, ou para deixarmos o outro feliz. São mentiras “brancas”, que consideramos inofensivas ou que servem um propósito que nos interessa mas julgamos não alterar a linha do destino já traçada. E, depois, há a maldade.

Os mentirosos compulsivos são os que manipulam constante e deliberadamente, sem interesse pelo mal que causam aos outros. Bernie Madoff, o financeiro milagroso, que fazia fortunas duplicar num esquema Ponzi, não era mais do que um intrujão calculista e meticuloso. Mas uma personagem como George Santos, que está lá longe nos EUA, é absurdamente perigosa. Foi drag talvez só no samba, mas foi anti-LGBT; não se sabe onde estudou; apresentou-se falsamente como descendente do Holocausto; mentiu acerca do 11 de Setembro e de ser um fenómeno de Wall Street; e até roubou um cão doente. E nada disto teve consequências após ter sido eleito. Este é um momento de pós-pós-verdade e de criação de verdades ficcionadas enquanto modo de vida, e sem consequências. Em que se pode ser o que se quiser até atingir o objetivo e nem se é visto como fraude. Santos é patético. Mas a impunidade que alcançou e projeta não augura nada de bom.

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