Kissinger: Beyond Good and Evil*

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O embaixador do Chile nos EUA escreveu que o seu “brilho histórico nunca conseguiu disfarçar a sua profunda miséria moral”. Kissinger foi um criminoso de guerra e um inimigo da democracia sempre que ela pôs em causa os interesses do Império. Mas por ter sido um dos seus mais brilhantes observadores participantes e teóricos, é fundamental para perceber a lógica imperial. De que foi servidor, não arquiteto

Custa-me a agressividade contra qualquer figura pública no dia da sua morte. Esse dia deve ser reservado aos que gostavam da pessoa que parte. Ainda assim, quando a personagem é internacional e de grande relevância, reduz-se o risco das pessoas que sofrem com a sua morte chegarem sequer ao que dizemos ou escrevemos. Permiti-me, por isso, a maior liberdade no dia da morte de Henry Kissinger, mantendo, no entanto, a elegância necessária. Escrevi, na sempre frustrada esperança da eficácia da subtileza, numa rede social: “Henry Kissinger foi um homem brilhante. O que o mundo perdeu com isso são outros quinhentos.”

Queria apenas dizer duas coisas que me parecem óbvias. A primeira é que Kissinger não foi apenas um homem superiormente inteligente, mas um dos mais brilhantes e bem informados estrategas e diplomatas. Indispensável para compreender a Guerra Fria.

A inteligência e o saber não são categorias morais. Juan Gabriel Valdés, embaixador do Chile nos EUA, escreveu que “morreu um homem cujo brilho histórico nunca conseguiu disfarçar a sua profunda miséria moral”.

Kissinger esteve envolvido em algumas das decisões mais criminosas dos EUA desde o fim da II Guerra. Depois do Camboja, do Laos, do Vietnam ou do Bangladesh, onde as opões que favoreceu se podem medir em milhões de mortes, é legitimo referirmo-nos a ele como um criminoso de guerra. E foi um inimigo da democracia sempre que ela pôs em causa os interesses do Império, que é o mesmo que dizer que não acreditava realmente nela – porque não achava que os interesses norte-americanos pudessem ser deixados nas mãos da “irresponsabilidade” dos povos. Foi cúmplice ativo do seu esmagamento no Chile, na Argentina e, em geral, em toda a América Latina. E defensor de apoio de todas as ditaduras que estivessem do lado certo, incluindo o ignóbil regime do apartheid.

Referir o que o mundo perdeu com o seu brilhantismo (e não o que ganhou) é dizer que a inteligência nem sempre está ao serviço do bem comum, coisa que todos sabemos. E é reconhecer qualidades intelectuais ou culturais ao inimigo (e assim me refiro a Kissinger). Não estou a falar da destreza que disponível a qualquer pessoa medianamente inteligente e sem escrúpulos, mas de génio. E admirar o génio do inimigo é a melhor forma de não ceder ao primarismo moral. Aquele que resume os confrontos políticos a embates entre o bem e o mal, que é como quase todas as potências tentam vestir os seus ímpetos imperiais, sobretudo a que Kissinger serviu.

Depois de contabilizar apenas parte dos crimes de Henry Kissinger, e recordando um que nos foi mais próximo – o apoio ativo à anexação de Timor Leste –, Ana Gomes terminou o seu artigo assim: “Para quem pense que a realpolitik pode determinar a política externa dos Estados, recordo que o Portugal democrático e um Timor Leste independente demonstram o fatal irrealismo de quem manda princípios e valores às urtigas. Na diplomacia, como na vida.”

O único problema da posição anti-realista de Ana Gomes, com que genericamente até concordo, é que este caso não a confirma. Portugal não é uma potência e os seus interesses não estavam realmente em causa. E o facto de só ter “regressado” a Timor Leste quando a Guerra Fria tinha chegado ao fim – o que quer dizer que aquele já não era um assunto em que o nosso aliado norte-americano estivesse empenhado – desmente-o, aliás. Assim como a aceitação da independência de Timor-Leste, quando a esfera de influência soviética já não era um problema.

Ao contrário de Miguel Esteves Cardoso, não acho que homens como Kissinger sejam “patriotas”. Trabalham para os interesses económicos específicos de uma elite nacional e um dos problemas do olhar de Kissinger sobre o mundo é que, hoje, essa elite é cada vez menos nacional. Se me ficar pela questão moral, Kissinger não foi apenas inimigo dos inimigos da América, foi inimigo de todos os que morreram em nome dos interesses particulares que serviu, muitos deles jovens norte-americanos, quase sempre os mais pobres, desproporcionadamente negros. Porque nunca foi a estes que qualquer Império serviu.

É natural que quem considera um líder do mundo livre a nação com a segunda maior população prisional do mundo (quase empatada com a China, uma ditadura com o quadruplo da população), que continua a aplicar a pena de morte, que é incapaz de garantir mínimos de dignidade social e segurança a boa parte da população e que repetidamente desrespeita a democracia de terceiros, olhe para quem reforçou o poder dos EUA como um exemplo político e moral, que serviu, sujando as mãos, um bem maior. Não é o meu caso.

Não há impérios benignos, mesmo quando se anunciam libertadores. Nem sequer há Impérios democráticos. Há metrópoles democráticas. O Reino Unido era uma democracia no preciso momento em que esmagava a liberdade e a dignidade dos indianos. O mesmo acontecia com França, em África. Quanto muito, podemos dizer que a democracia na metrópole torna o poder mais sensível ao incómodo que determinado comportamento cause aos seus próprios cidadãos. Quando os impérios exportam democracia, fazem-no condicionalmente, bloqueando o que seja contrário aos seus interesses. Como os EUA fizeram durante décadas, na América Latina.

O meu problema é, no entanto, a relevância que se dá a Kissinger. Ele não foi um arquiteto do imperialismo norte-americano, que lhe precedeu. Foi seu servidor. Nada contra termos posições morais na política. Estou a léguas de ser um cínico. Tudo contra personalização dos fenómenos políticos, que alguma historiografia aprecia. Kissinger não foi responsável pelos crimes de guerra dos EUA. Os responsáveis foram os EUA, que os basearam num consenso político interno assinalável sobre o seu papel imperial (e falsamente moral) no mundo.

Bernardo Teles Fazendeiro chamou a Kissinger “o lado obscuro de uma política norte-americana”. Sem esse lado, sobraria a retórica libertadora que pouco ou nada determinou as suas escolhas. A suposta superioridade moral dos EUA nunca foram mais do que um instrumento de poder e o pragmatismo de Kissinger foi um símbolo disso mesmo, demonizando inimigos e negociando, sem qualquer problema, com os demónios. O pragmatismo que serviu para esmagar democracias também serviu para os acordos nucleares, o apaziguamento com a China, o fim da guerra do Vietname ou acordo israelo-árabe.

Por ter sido um dos seus mais brilhantes observadores participantes e teóricos, Kissinger é fundamental para perceber a lógica imperial. É interessante, aliás, verificar como muitos dos que agora recusam ir mais longe do que a avaliação moral da personagem o citaram para defender uma postura diferente em relação à Ucrânia (posição que renegou perante a pressão política e social a que, sendo não apenas um intelectual, mas também um político, cedeu). E como muitos dos que o vilipendiaram por essa sua posição a ignoram no momento de fazer o obituário. Como se essa posição não fosse, na lógica que dá precedência às grandes potências, coerente com o seu pensamento de sempre.

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