Aquilo que se nota aqui, de novo, é o moralismo desta direita que só aceita um modelo de família: a mulher em casa, em segundo plano, a parir filhos sem fim como uma coelhinha, não da Playboy, mas do estado da natureza
Nesse cenário hipotético e mais risonho para a humanidade, um Trump sem descendência, ninguém se lembraria de transformar a ausência de prole num assunto político por duas razões. Primeira, a esquerda pode ser muito moralista, mas não neste ponto. Segunda, Trump é um homem e, portanto, está protegido pela cultura em relação aos deveres familiares, que ficam apenas do lado da mulher. O que é um crédito para o homem – “é focado”, “só pensa no país” – passa a ser um descrédito para a mulher, “demasiado fria”, “demasiado ambiciosa”, “se não cuida de filhos, como pode cuidar dos outros” – é curioso que as pessoas que pensam assim costumam ser as mesmas que não veem problemas na ausência de casamento e filhos na vida dos padres. Mas adiante.
Claro que Kamala Harris já foi atacada pelos republicanos devido ao facto de não ter filhos biológicos, não foi uma mãe no sentido biológico, não engravidou, não pariu – o escândalo! O moralismo aqui é criticável por várias razões. Em primeiro lugar, muitas mulheres não conseguem engravidar por mais que tentem devido a problemas de infertilidade – dela ou do marido; levantar este tema para aproveitamento político revela insensibilidade grosseira, um nível de taberna. Em segundo lugar, Kamala tem sido mãe das suas enteadas, as filhas do primeiro casamento do marido – uma situação bastante comum fora da bolha moralista da direita do (alegado) nacionalismo cristão – “nacionalismo cristão” é uma contradição dos termos como “comunismo capitalista”, mas adiante.
E, tendo em conta a história familiar que se conhece de Trump, alguém duvida que Kamala é uma cuidadora mais atenta e empática do que o seu adversário? O nosso perfil familiar não é determinado pela biologia, mas pelo que escolhemos fazer, até porque há mulheres que não têm filhos porque tomaram sempre conta dos pais envelhecidos numa missão de sacrifício pessoal que é alienígena para Trump e demais homens desta masculinidade esclerosada.
Voltamos portanto à questão fatal: aquilo que se nota aqui, de novo, é o moralismo desta direita que só aceita um modelo de família: a mulher em casa, em segundo plano, a parir filhos sem fim como uma coelhinha, não da Playboy, mas do estado da natureza. Uma mulher que desafia este modelo – quer mandar no país, não teve filhos biológicos – é obviamente uma ameaça para quem vive na utopia reacionária: voltar a 1950 e, quem sabe, a Gileade.
Nunca se coloca aos homens a pergunta “como concilia a carreira com os filhos?”. Eu publiquei este ano um romance considerado revolucionário no quadro da literatura portuguesa por muita gente conhecida e menos conhecida, há já gente interessada em fazer uma adaptação ao ecrã, é a história de um suicida de 700 pp. Dei muitas entrevistas, tive muitas conversas pessoais: mas nunca ninguém me perguntou como consegui conciliar o jornalismo aqui no jornal e a escrita de um romance com o papel de principal cuidador das minhas filhas. Sou eu a dona de casa aqui em casa. Essa pergunta só é feita a uma mulher. Na minha história pessoal, sinto isso como uma injustiça, é até difícil colocar em palavras a injustiça que sinto neste tema. Mas também sei que o que está aqui em jogo é sobretudo uma injustiça estrutural que massacra as mulheres.
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