O “Credo Americano”
Se o Partido Democrata quiser vencer Trump nas próximas presidenciais terá de apresentar um candidato e um programa alicerçado na outra corrente principal do nacionalismo do país: o “Credo Americano”. E, nas atuais circunstâncias, só Joe Biden pode ser o seu representante.
12 de Março de 2020, 5:51
Foi a noite de todas as perguntas. 8 de novembro de 2016. Contra as expetativas da esmagadora maioria das pessoas, Donald Trump foi eleito Presidente dos Estados Unidos. Numa televisão, uma pivot, com o olhar perdido, questionava: “Será que isto está mesmo a acontecer? como é possível?” Parecia à partida muito estranho. Tratava-se do país que em 2008 fez história ao eleger Barack Hussein Obama, um afro-americano, filho de pai muçulmano, que tinha como grande referência Abraham Lincoln. Oito anos depois, escolhia um branco nativista, que prometia devolver a grandeza aos “verdadeiros americanos” e se inspirava em Andrew Jackson. Era preciso encontrar respostas e essas costumam estar nos grandes livros, como o magnífico América. A Bem ou a Mal. Uma Anatomia do Nacionalismo Americano, de Anatol Lieven.
Ironicamente, esta obra que ajudou a compreender a vitória de Trump é a mesma que pode contribuir para entender o caminho a seguir pelo Partido Democrata nas suas primárias e para derrotar o 45.º Presidente dos EUA em novembro deste ano. Ela analisa uma das componentes mais importantes da cultura política norte-americana – o nacionalismo – e as suas duas principais correntes – o “Credo Americano” e a “Antítese”. De forma feliz, Lieven recorre logo no início a uma imagem tão sedutora quanto certeira, escrevendo: “Ao mesmo tempo que mantém um lar esplêndido e acolhedor, a América também alberga uma família de demónios na sua cave”.
O “Credo Americano”, também chamado de nacionalismo cívico, é otimista, confiante, acredita num futuro glorioso para a nação e constitui, simultaneamente, a base fundacional do país e a dominante ao longo da maior parte da sua história. Ele corresponde ao “conjunto de grande crenças e princípios democráticos, legais e individualistas” sobre os quais foi “fundado o estado e a constituição americanos”. Trata-se de um conjunto de proposições acerca dos Estados Unidos que o país apresenta a si próprio e ao mundo, enraizadas no iluminismo, defendidas, como o próprio termo sugere, com fervor ideológico quase religioso e que tem como elementos essenciais a liberdade, a democracia, o estado de direito, o individualismo, o igualitarismo cultural e político (mas não, definitivamente, o económico), a promoção social para todos independentemente da classe social de nascença, o dever de exportação dos valores americanos no exterior, de modo por vezes messiânico.
A “Antítese”, também chamada de nacionalismo etnorracial ou nativista, corresponde à tal cave dos demónios da casa americana, cujas facetas estão na maioria do tempo subordinadas ao “Credo”, mas emergem à superfície nos momentos de crise, como as guerras, as depressões económicas, ou os atentados terroristas. Ao contrário do anterior, é pessimista quanto ao futuro e o seu desejo essencial é o retorno a um passado idealizado, a uma “nação étnica e culturalmente mais pura”, a uma “sociedade tradicional e estável”, a uma “economia moral” na qual “pessoas esforçadas e decentes têm garantido um emprego digno”, a um governo “do povo para o povo” e não para as elites, a um sistema de valores baseado no amor à pátria (e na honra de morrer por ela), na família, na religião, na resiliência perante a adversidade, no trabalho árduo, a uma “América pura” não conspurcada pelo “outro”, seja ele o estrangeiro ou o imigrante.
No plano da política externa, o primeiro nacionalismo auxiliou a consolidação do poder e da influência dos EUA à escala mundial, servindo de arquétipo para outros Estados e permitindo que a América se tornasse uma potência ordenadora, apta a construir e defender a ordem internacional, bem como a inspirá-la com os seus valores e exemplo. Já o segundo sempre assentou no incitamento ao isolamento, na desconfiança do exterior, na rejeição de qualquer papel de liderança mundial para o país, numa crença na pureza dos tempos em que George Washington alertava para os perigos das alianças no exterior.
Como defendi neste jornal há quatro anos, a vitória de Donald Trump alicerçou-se na força profunda da “Antítese”, traduzida na noção de decadência da América, vítima das suas elites e do “outro”, quase um país em vias de desenvolvimento, violento, desigual, cheio de desemprego e de injustiças. Uma potência que foi explorada pelo resto do mundo, que se aproveitou da segurança internacional por si oferecida, de forma oportunista, não pagando nada e ainda aproveitando para explorar os norte-americanos. Em súmula, uma nação que perdeu a grandeza e a honra, que tem de ser urgentemente concertada e novamente engrandecida. Daí os seus slogans de campanha – a “América Primeiro”; “tornar a América grande outra vez” -, mas também o essencial do seu programa político, nomeadamente a ofensiva contra o establishment de Washington, a denúncia das “falsas promessas” da globalização, a defesa do protecionismo, a ofensiva contra os imigrantes, fossem eles hispânicos ou islâmicos (chegando ao ponto de sugerir a construção de um muro para proteger o país desse mal), a rejeição do estrangeiro.
Se o Partido Democrata quiser vencer Trump nas próximas eleições presidenciais terá de apresentar um candidato e um programa alicerçado na outra corrente principal do nacionalismo do país: o “Credo Americano”. E, nas atuais circunstâncias, só Joe Biden pode ser o seu representante e porta-voz.
Biden tem de reconhecer essa força extraordinária que é na América o nacionalismo (hoje, renascido não só aí, como em muitos outros lugares), mas adotar a sua versão tolerante, confiante, crente nas capacidades dos norte-americanos e no seu futuro. Ao contrário do que muitas vezes é sugerido atualmente, ele foi o principal responsável por os Estados Unidos se terem tornado grandes, interna e externamente, e contém em si as respostas necessárias para muitos dos principais problemas que os norte-americanos enfrentam no seu dia-a-dia, seja na economia, seja nas questões de identidade, seja na imigração, seja na segurança, seja na política externa.
Ele aceita que a primeira obrigação moral do governo EUA é garantir a segurança material e física dos cidadãos nacionais. Acredita no “sonho americano”, concretizável pelo trabalho árduo e honrado. É aberto e inclusivo, mas não só não admite qualquer obrigação moral para com os migrantes económicos, como pode ser implacável com a imigração ilegal. Defende que uma ameaça à segurança da América tem de ser combatida de forma dura e decisiva, se necessário através da guerra total, impondo aos adversários a rendição incondicional. É internacionalista, mas na medida em que isso é do interesse do país, enfrentando qualquer rival, real ou potencial, seja ele militar, seja mesmo apenas económico.
Qualquer espetador atento da política dos Estados Unidos sabe que as eleições presidenciais são sempre ganhas por alguém que representa ou a cultura política do país, ou um dos seus mitos fundacionais, ou um momento da sua história, ou um dos seus heróis do passado, idealizado ou real. Goste-se, ou não, Joe Biden representa o “Credo Americano”. Já o socialista Bernie Sanders não representa nada na América.
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