Quando as primárias democratas terminaram e Bernie Sanders anunciou o apoio a Joe Biden, os dois iniciaram uma série de contactos entre as suas equipas com vista a moldar uma proposta política menos fraturante no partido. Só que os seis grupos de trabalho dedicados às principais políticas públicas (justiça, ambiente, economia, educação, saúde e imigração) deixaram um fundamental fora das prioridades, indiciando uma incompatibilidade de fundo entre a ala “progressista” e a “centrista” do partido democrata: a política externa.
Há razões fundadas para essa disputa, todas com pelo menos 30 anos de existência. Se Biden é um herdeiro das tradições internacionalistas liberais clintonianas, fazendo da ação militar um instrumento da indisputável primazia americana, Sanders recusa esse papel excecionalista da América e os biliões do Pentágono, assumindo uma restritiva política externa. Desta distinção parece não existir qualquer possibilidade para se forjar uma proposta equilibrada e coerente, mas o que tem acontecido mostra haver espaço para essa construção.
A equipa de Joe Biden para a política externa é muito mais experiente e conhecida do que a de Sanders, que tem apenas Matt Duss como influente conselheiro, apesar de tudo alguém capaz de estabelecer pontes com o team Biden, sobretudo com o núcleo duro composto por Tony Blinken, Bill Burns, Jake Sullivan, Julie Smith e Michèle Flournoy, todos antigos membros da administração Obama. Os contactos de trabalho são recorrentes e o sinal dado da maior importância: união democrata em contraste com o caos da gestão Trump na pandemia e dos danos provocados à credibilidade dos EUA no exterior. Os democratas têm beneficiado ainda da boa relação entre Biden e Elizabeth Warren, a candidata às primárias com o programa de política externa mais interessante, aconselhada por Sasha Baker e Ganesh Sitaraman, e de quem se fala estar a ser considerada para a vice-presidência.
Há, até ao momento, dois pontos de equilíbrio entre os três staffs, capazes de definir posteriormente uma série de prioridades. O primeiro resulta de uma alteração estrutural no ambiente político americano, acelerado entretanto pelos efeitos catastróficos da covid: uma América menos inclinada para se intrometer em várias crises em simultâneo ou sequer assumir um papel determinante na evolução das grandes questões da globalização. A pesada ressaca das longas guerras do pós-11 de Setembro (Afeganistão, Iraque e Líbia), intervaladas pela grande crise financeira de 2008-2009, já tinha levado Obama ao ceticismo no uso de instrumentos militares de longa duração, procurando ao mesmo tempo uma acomodação à ascensão de grandes potências mais ou menos regionais, premindo o reset com a Rússia, usando a diplomacia com a China, entusiasmando-se com o Brasil e a Índia, e reintegrando o Irão na política internacional. Quatro anos de Trump viraram tudo isto, embora tenham acrescentado cem mil milhões de dólares ao Pentágono. Os aliados passaram a ser tratados como rivais, a beligerância unilateral com Pequim e Teerão atingiu níveis preocupantes de voluntarismo desbragado, e o alinhamento autoritário com as administrações brasileira e russa trouxe uma pressão acrescida à saúde das democracias ocidentais.
Neste contexto de competição aberta entre grandes potências – diferente da acomodação internacional ensaiada por Obama, com o qual Biden era um vice-presidente alinhado -, a resposta trabalhada pela plataforma eleitoral democrata passa por dar total prioridade à reconstrução interna americana (polarizada, institucionalmente disfuncional, em recessão histórica e com desemprego descontrolado), fazendo da retração uma estratégia de continuidade da última década, mas por outros motivos. Se Trump é um nacionalista convicto, com desprezo pelo funcionamento das dinâmicas globais, o internacionalismo de Biden é invertido, fazendo da recuperação interna um fator de reinvenção do papel global dos EUA. Por outras palavras, a hecatombe provocada pela covid e pela desastrosa gestão política de Trump contribuíram para harmonizar uma estratégia entre democratas, à partida irresolúvel.
O segundo ponto de progressivo equilíbrio está relacionado com os recursos financeiros disponíveis para enfrentar a atual crise económica. Dados oficiais apontam para uma contração de 32% do PIB entre abril e junho, a mais grave na história americana. Para termos uma ideia, na pior fase da crise de 2008-2009, o valor mais grave do colapso situou-se nos 8,4%. A situação é profundamente dramática e uma das razões por detrás da golpada de Trump, quando ameaçou adiar eleições sem ter poder para tal, ou ao lançar a anarquia quando anunciou não reconhecer o resultado caso perca, o que oficializará a entrada da democracia americana numa tipologia muito específica de regimes, a que se costuma chamar “república das bananas”.
A covid implica a afetação de todos os recursos federais para programas de salvação do emprego, das empresas e da saúde pública. É aqui que entra a velha proposta dos “progressistas” democratas de cortar em pelo menos 10% do orçamento da Defesa, que aliás Sanders apresentou já no Senado com apoio do líder da bancada democrata, Chuck Schuman. Biden não fecha a porta, mas não se atravessa com metas. O que parece certo afirmar é que a indisponibilidade de gerar missões militares no estrangeiro como noutros momentos da história implicará uma revisão das prioridades financeiras do Pentágono, argumento que faz sentido ser trabalhado na campanha para as presidenciais.
Esta dupla predisposição (política externa restritiva e reorientação de recursos) só faz sentido se for acompanhada de uma intensa capacidade diplomática, caso contrário pode-se confundir com a retração de Trump por meios mais polidos. E não pode ser isso. As alianças têm de ser reativadas, recuperadas, reinventadas. Menos dependentes da vontade unilateral de Washington, mais equilibradas nos meios e no alcance. Tudo isto implica um melhor contributo dos aliados, nomeadamente na NATO. O mesmo para a reinvenção das organizações multilaterais. Não basta repor o que Trump cortou financeira e politicamente. É preciso construir coligações de vontades entre Estados de forma a adaptar um multilateralismo eficaz ao contexto pós-covid, depois de a pandemia ter eclipsado e descredibilizado grande parte dos seus fóruns.
A tentação por restaurar a política externa de Obama é grande. Só que o mundo mudou muito nos últimos anos e nunca é bom sinal querer ser alguém que, manifestamente, não pode ser copiado. Não existindo uma doutrina Biden, serão as várias tensões no partido democrata a desenhá-la. Talvez seja esta a melhor forma de a tornar vencedora.
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