Trump no Monte Rushmore…para ver o fogo-de-artifício que Obama proibiu
Visita do presidente está envolta em polémica por causa do risco de incêndios florestais causados pelo espetáculo, mas também porque o evento vai reunir 7500 pessoas que não são obrigadas a usar máscara ou ao distanciamento social em plena pandemia. Além disso, o monumento construído em terras roubadas aos índios não está isento de acusações racistas.
Susana Salvador
03 Julho 2020 — 00:56
Uma década depois de ter sido proibido por motivos ambientais, o fogo-de-artifício está de volta ao Monte Rushmore para assinalar o Dia da Independência dos EUA. E com um convidado muito especial: o presidente norte-americano, Donald Trump, que no passado já disse que gostava de ver o seu rosto esculpido ao lado dos de George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln.
O regresso do fogo-de-artifício, que foi proibido em 2009 pela administração de Barack Obama, não é a única polémica em torno da visita de Trump ao memorial no Dacota do Sul, esta sexta-feira à noite, véspera das festividades do 4 de Julho que serão assinaladas com pompa no sábado, em Washington.
No evento, que será antecedido de um discurso do presidente, estarão ainda outras 7500 pessoas (tiveram que pagar um dólar para entrar num sorteio feito pelo turismo do Dacota do Sul), não sendo necessário distanciamento social ou uso de máscara em plena pandemia de coronavírus.
Depois, há a crítica histórica de vários tribos, por o monumento ter sido construído em terras índias. E as acusações contra o escultor Gutzon Borglum (responsável pelo projeto iniciado em 1927), que ganham mais força em pleno movimento contra estátuas consideradas racistas.
Num comício em 2017, Trump sugeriu que o seu rosto podia ser incluído no Monte Rushmore, avisando os apoiantes que os media iriam considerar tal sugestão egoísta. A proposta era que todos os presidentes estivessem no monumento. Os responsáveis do parque já avisaram contudo que não há espaço para mais ninguém.
Numa entrevista em 2018, a atual governadora (e então congressista), Kristi Noem, disse que o presidente lhe tinha falado também dessa hipótese e não estava a brincar. “Sabes que é o meu sonho ter o meu rosto no Monte Rushmore?”, contou Noem que Trump lhe tinha dito, indicando que começou a rir-se, mas ele não.
O fogo-de-artifício
O espetáculo anual ocorreu pela primeira vez em 1998 mas desde 2009 que não se realiza, depois de a administração de Obama o ter proibido por questões ambientais. Desde logo por causa do risco de incêndio – um estudo de 2017 do Serviço Nacional de Parques, citado pelo The Washington Post, concluiu que pelo menos 27 incêndios florestais tiveram início nas comemorações do Dia da Independência, entre 1999 e 2007.
A zona das Black Hills, onde se localiza o Monte Rushmore, pode estar em risco elevado ou muito elevado de incêndio em julho e, apesar dos cuidados que costumavam existir, os fogos florestais continuavam a ocorrer. Apesar de o próprio monumento ter sido esculpido em calcário, em redor há florestas de pinheiros e a zona está em seca moderada.
O mesmo estudo indicava ainda que a capacidade do parque é de oito mil pessoas (em média é visitado por mais de 34 mil por dia) e que o evento tinha vindo a ganhar cada vez mais popularidade, pelo que de manhã já tinha sido atingida essa capacidade, com as pessoas a querer o melhor lugar para ver o espetáculo e muitas outras a terem que ser proibidas de entrar. Só há uma via de acesso, que com o trânsito elevado tornava difícil a chegada dos bombeiros e que, em pelo menos dois anos, foi cortada pelos incêndios, deixando sem via de evacuação o parque.
Mas, além do perigo de incêndio, o relatório indicou outro problema: o aumento do nível de perclorato no solo e nas águas. Este é um composto usado habitualmente nos fogos-de-artifício, concluindo-se que terão sido eles os responsáveis pela sua introdução no parque. Medições das águas entre 2011 e 2015 mostraram níveis superiores ao considerado seguro, sendo que o perclorato pode interferir na capacidade de a tiroide absorver iodo.
Em janeiro, o presidente Trump contou uma conversa que teve com a governadora Kristi Noem (assumiu o cargo em 2019 após oito anos na Câmara dos Representantes). A republicana perguntou ao presidente, num telefonema após tomar posse, se achava que podiam ter o fogo-de-artifício de volta, com Trump a questionar porque é que tinha parado. “Questões ambientais”, respondeu Noem, com o presidente a questionar “o que é que pode arder. É pedra”.
Trump alegou que em 15 minutos ligou às pessoas responsáveis e desbloqueou a situação – mas segundo a rádio NPR, só um mês depois os serviços começaram a avaliar a situação. Na mesma altura em que Trump, no Twitter, disse estar “feliz” por anunciar que o “grande fogo-de-artifício” ia voltar em 2020. Só em finais de abril deste ano veio o parecer, de que não havia impacto significativo e que o evento podia acontecer.
Uma queimada controlada foi feita a 29 de abril perto do Monte Rushmore, numa tentativa de reduzir o possível combustível no terreno antes do fogo-de-artifício. Uma decisão final sobre se há condições ou não para realizar o espetáculo será tomada apenas nesta sexta-feira – há 20% de hipótese de chuva antes da meia-noite.
Só o fogo-de-artifício, que vai demorar 18 minutos e incluir música e uma homenagem aos trabalhadores do setor da saúde, custa 350 mil dólares ao estado, sem contar com os custos de segurança e outros associados.
Coronavírus
“Vamos ter um grande evento. Dissemos às pessoas que têm preocupações que podem ficar em casa. Mas, para aqueles que se querem juntar a nós, vamos distribuir máscaras gratuitas, se quiserem usar uma, mas não haverá distanciamento social.” Foi desta forma que a governadora respondeu, na Fox News, às preocupações daqueles que consideram um risco um evento deste género em plena pandemia de coronavírus.
Na quarta-feira, as autoridades de saúde estaduais anunciaram a morte de mais duas pessoas por covid-19 no Dacota do Sul, elevando para 93 o número de mortes desde o início da pandemia – um número reduzido tendo em conta os mais de 130 mil mortos em todos os EUA. Registaram-se ainda mais 62 novos casos nesse mesmo dia, tendo já sido contabilizados 6826 no estado (2,74 milhões no total do país). Há atualmente cerca de 800 casos ativos, sendo que 65 estão hospitalizados.
Mas os críticos do evento consideram que reunir mais de 7500 pessoas no Monte Rushmore poderá desencadear um aumento do número de casos no estado (e não só). Além daqueles que conseguiram bilhete (uns vão ficar numa zona de anfiteatro, enquanto outros terão que trazer as próprias cadeiras para ficar numa zona de gravilha), espera-se que o evento atraia mais pessoas para as imediações do parque.
Um segundo evento com fogo-de-artifício (o maior visto nos últimos anos) para assinalar o Dia da Independência terá lugar no próprio dia 4 de julho, em Washigton D.C., devendo ser distribuídas até 300 mil máscaras para quem quiser usar (não será obrigatório). A presidente da câmara da cidade, a democrata Muriel Bowser, não tem poder para impedir a celebração, porque esta decorre em terrenos federais, tendo pedido aos residentes para celebrar perto de casa.
O evento incluirá ainda o sobrevoo de aviões da Força Aérea, mas ficará longe da parada militar que Trump exigiu que fosse realizada no ano passado, que custou três vezes mais do que as tradicionais celebrações do Dia da Independência.
Protestos
Vários grupos de índios têm previsto protestar esta sexta-feira na zona junto ao Monte Rushmore. Tudo para mostrar o descontentamento em relação às políticas do presidente, lembrando ainda que o monumento foi construído em terras consideradas sagradas.
Os líderes locais estão preocupados. “Trump vir aqui é uma preocupação de segurança não apenas para o meu povo, dentro e fora da reserva, mas para as pessoas nas Grandes Planícies. Temos um acesso tão limitado aos recursos nas Black Hills, e já estamos a ver as infeções a aumentar”, disse o líder dos Oglala Sioux, Julian Bear Runner, numa entrevista ao The Guardian, dizendo que não pode evitar que as pessoas exerçam o seu direito ao protesto.
O mesmo responsável defende ainda que Trump devia ter pedido autorização aos sete governos Sioux para a sua visita. “As terras em que aquela montanha está e as terras que ele vai visitar pertencem à grande nação Sioux, de acordo com um tratado assinado em 1851 e o Tratado de Forte Laramie de 1868 e tenho que lhe dizer que ele não tem permissão dos seus donos originais de entrar no território desta vez”, acrescentou.
De acordo com o jornal, a descoberta de ouro na região na década de 1870 levou o governo federal a obrigar os Sioux a abdicar de parte da sua reserva, onde se encontram as Black Hills. Em 1980, o Supremo Tribunal dos EUA concluiu que as terras tinham sido retiradas ilegalmente.
O último presidente a visitar o Monte Rushmore foi George W. Bush, em 2002.
Uma obra racista?
Há ativistas que consideram que os rostos dos quatro ex-presidentes norte-americanos cravados na montanha são tão ofensivos como as estátuas de conquistadores espanhóis ou líderes da Confederação, que têm vindo a ser derrubadas ou alvo de vandalismo em várias cidades norte-americanas. Também eles já pedem há vários anos que os rostos de mais de 18 metros sejam retirados.
A ideia original do historiador Doane Robinson, que nos anos 1920 estava à procura de ideias para atrair turistas ao Dacota do Sul, era um monumento em homenagem a grandes figuras do Oeste Americano, como os exploradores Lewis e Clark ou o líder dos Oglala Lakota, Red Cloud (nuvem vermelha), que combateu o Exército norte-americano e assinou o tratado de Forte Laramie.
Mas o escultor que foi escolhido para o projeto, Gutzon Borglum, optou pelos quatro ex-presidentes. O seu currículo também não é bem visto aos olhos dos críticos do monumento, conta o The New York Times num artigo sobre o Monte Rushmore.
Antes do projeto no Dacota do Sul, Borglum esteve envolvido no de Stone Mountain, na Georgia, onde foi esculpido o maior baixo relevo do mundo. Este representa três figuras da Confederação (defensores da escravatura durante a Guerra Civil) – o presidente dos Estados Confederados Jefferson Davis, e os generais Robert E. Lee e Stonewall Jackson – montados nos seus cavalos favoritos Blackjack, Traveller e Little Sorrel.
Uma obra ligada ao Ku Klux Klan, com quem Borglum simpatizava e em cujas reuniões participava para angariar fundos para o seu projeto na Geórgia (que viria a ser concluído apenas na década de 1970). Todo o parque, que abriu oficialmente em 1965, é uma homenagem aos 13 estados que faziam parte da Confederação. Borglum, segundo os historiadores, além de supremacista branco também tinha ideias antissemitas.
O Monte Rushmore – o nome foi reconhecido oficialmente em 1930, em honra do empresário Charles E. Rushmore que doou dinheiro para a construção do monumento (os Sioux conheciam-no como Seis Avós ou Montanha do Puma) – começou a ser esculpido em 1927 e demorou 14 anos a ficar concluído. Foi o filho de Borglum, Lincoln, que acabaria os trabalhos.
Além da visão racista do escultor, os próprios presidentes cujos rostos figuram no Mount Rushmore não são isentos de um legado complicado: tanto Washington como Jefferson eram donos de escravos. Roosevelt expulsou os índios das suas terras e tentou converte-los aos cristianismo. Já Lincoln pode ter assinado a abolição da escravatura, mas tem sido criticado pela resposta ao levantamento do Minnesota, em que 300 índios foram condenados à morte (o presidente reduziu o número de condenados para 38, que foram enforcados na maior execução em massa da história dos EUA, segundo o mesmo artigo do The New York Times).
Estátuas de Roosevelt e Lincoln já foram retiradas de algumas cidades norte-americanas, no meio dos protestos raciais desencadeados após a morte do afro-americano George Floyd às mãos de um polícia branco. As estátuas foram retiradas não tanto pela história mas pela forma como estavam representados: Roosevelt, em Nova Iorque, seguia a cavalo com um negro e um índio ao seu lado, enquanto Lincoln era apresentado com um escravo libertado ajoelhado, numa estátua em Boston.
Trump assinou recentemente uma ordem executiva que protege as estátuas, defendendo que os manifestantes responsáveis pelos atos de vandalismo sejam presos e sujeitos a longas penas de prisão.
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