Não consigo me esquecer de uma fotografia de 40 anos atrás, onde a família Bin Laden posa, felicíssima e unida, numa viagem de férias a Estocolmo. Estão encostados num carro de luxo, pais, tios, primos, moças e moços, joias e roupas caras, todos alegres milionários sauditas curtindo o Ocidente e, no meio deles, o Osama, sorridente, eufórico mesmo, de roupa ocidental, portando um Rolex. Aquele menino feliz ia virar o comandante do terror.
Não sei o que fez Osama mudar tanto, mas não consigo acreditar em seu puro fanatismo religioso. Osama era muito mais que um adorador de Alá. Para nós é muito fácil demonizá-lo, xingá-lo, para que ele vire um aborto, um trambolho primitivo que atacou nossos caros valores civilizados. Mas, não; Osama era rico e civilizado também e, como disse o escritor Fernando Savater, “um triunfo sinistro da sacrossanta iniciativa privada. (…) ele e seus seguidores são apenas a expressão dos males que nosso próprio sistema engendrou”.
Não cabe aqui fazer análise dos traumas do Osama, um retrato freudiano do homem. Osama continua sendo um enigma. Homem bonito, narcisista, seu sorriso calmo passava a impressão de que “não” era de submissão a Deus. Ele se achava um profeta fundador, e, mais que isso, nem sei se ele realmente acreditava em Deus. Osama bin Laden era chamado por seus fãs pelos seguintes nomes: “O Príncipe”, “O Emir”, “O Diretor”… e ele passava com seus mantos, elegante, com olhos e sorrisos discretos e “ocidentais”.
O escritor inglês Martin Amis escreveu um texto fantástico sobre os últimos dias da vida de Muhammad Atta, o líder do ataque às torres de setembro, e descobriu que o engenheiro formado na Alemanha não era crente e não lutava por razões políticas. Amis conclui que Muhammad Atta queria conhecer o “impensável”, queria sentir o “instante final”, os centímetros antes da colisão do avião com a torre. Atta queria viver o inominável – uma espécie de terrorismo metafísico.
Pois, acho que Osama é por aí… Ele não quis apenas matar milhares de inocentes para semear com seus corpos o que sempre sonhou – um novo califado islâmico, onde ele seria, claro, o sultão, o Harum al Rachid.
Mais que isso, ele queria interromper, arrebentar o tempo ocidental. O Islã não quer movimento, progresso – quer o imóvel e o eterno. Osama morava fora da História, contemplando-a com ódio e fascinação lá da eternidade desértica de sua terra. Osama invadiu a história ocidental para desmoralizá-la, ridicularizar nossas ilusões de continuidade, de lógica, de finalidade. Osama atacou a contemporaneidade com um estilo bem “contemporâneo”. Ele trouxe o “intempestivo” para o início do século 21 que, achávamos, seria confortável, seguro, controlável.
Eu estava lendo um ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben – O Que É o Contemporâneo? – e encontrei ali algumas pistas tiradas de Nietzsche em sua segunda Consideração Intempestiva -, talvez seu texto mais próprio para nos definir hoje.
E Nietzsche sentencia: “Minha “consideração intempestiva” procura compreender que aquilo do qual uma época se orgulha, isto é, sua cultura histórica, pode ser um mal, um inconveniente, um defeito”. Nietzsche situa sua exigência de atualidade, de contemporaneidade, numa desconexão, numa dissociação em relação ao presente. A contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distância crítica. Barthes diz também ali: “O contemporâneo é o intempestivo”. Osama nos trouxe esta consciência súbita e terrível; como um filósofo armado, um pensador-bomba, ele bagunçou nossa ordem jurídica internacional, nossa ideia de compaixão, fraturou éticas em que nos amparávamos. A história em que tanto confiávamos, pois seguia um ritmo linear, sucessivo, mudou de face. Os fatos perderam a solidez – só temos hoje expectativas. Ele trouxe de volta o que estava faltando ao Ocidente, desde o fim da guerra fria: o medo, a pulsão de morte que andava escondida, sublimada nos filmes e nos “hambúrgueres”.
Osama fez seu ato parecer uma catástrofe da natureza, como um terremoto. E o mais estranho é que, depois dele, tudo piorou, como uma aliança vingadora de Alá com a natureza. Osama nos fascina também porque ele foi um “sujeito da História”, como os marxistas diziam antigamente.
Mas, no fundo de tanto fanatismo e sonhos religiosos havia, creio, uma imensa vaidade. Osama queria ser uma celebridade, e não apenas no Oriente. Sucumbiu à vaidade de ser um superstar.
Naquela foto da Suécia (ou Dinamarca?), lá no sorriso feliz, no relógio de ouro, estava a pista de seu projeto narcísico.
Não tinha a humildade triste e suja dos fanáticos comuns; não queria se rojar ao chão com o rabo para cima em direção a Meca.
Ele queria desfilar sua elegância e seus lábios bonitos e sua barba macia e tingida.
Ele se sentiu, com razão, um verdadeiro Maomé, pois nunca um homem sozinho mudou tanto o mundo, com nada, com as armas do Ocidente. Ele inaugurou a Época da Normalidade Perdida, como nomeou Martin Amis e nos legou a imagem das torres caindo por toda a eternidade; ele fez a mise-en-scène de um dos mais marcantes momentos dos séculos, como a queda da Bastilha, o fim do império romano, sei lá… Osama é diferente de Kadafi ou Assad. Ele não queria poder político; queria reinar sozinho no “nada” que criou.
Era um “nada” estético, a anulação de tudo que não fosse seu projeto, como o sonho estético de Hitler para o milênio e, como ele, totalitário, anti-individualista (para os outros) e irracional.
Obama aprendeu com Osama que tinha de fazer também algo impensável. Foi brutal com os islâmicos, que agora reclamam que ele deveria ter sido mais “ético” e ocidental. Obama copiou Osama e foi “intempestivo”, cruel e implacável. E, na minha opinião, fez muito bem, porque sua decisão transgressiva promete mil avanços para nós, principalmente impedir a volta dos bushistas ao poder. Já imaginaram Newt Gingrich de presidente? Em meio a uma história revirada, com o mundo perplexo e sem soluções, isso por si só justifica o ato de Obama.
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