Bons e maus políticos na era da mentira e das redes sociais
Escrito por José Almada Dias
A capa da revista The Economist do passado dia 10 de Setembro tem o desenho de um rosto humano de perfil todo pintado de preto e com uma língua vermelha e comprida a sair-lhe da boca. Até aqui tudo normal, não fosse essa língua bifurcada como a das serpentes e o título de capa desta conceituada revista tão bombástico: “Art of the lie; post-truth politics in the age of social media”, o que significa, mais ou menos, “A arte da mentira; o pós-verdade da política na era das redes sociais”. No interior da revista, um artigo de 16 páginas dedicado ao tema.
Quando olhei para a capa, até me ri. O motivo: tinha começado a escrever esta crónica uns dias antes, planeando fazer a minha rentrée após as férias precisamente com este tema. E a ideia tinha-me aparecido enquanto estava a comentar as eleições autárquicas do passado dia 4 de Setembro aos microfones da rádio Morabeza, onde defendi em directo que mais do que a nova liderança do PAICV, quem tinha perdido as eleições de 4 de Setembro e de 20 de Março tinha sido a liderança que governou esta república crioula durante 15 longos anos.
Voltando ao artigo, este defende que, apesar de os políticos sempre terem mentido ao longo dos tempos, a coisa tornou-se pior nesta nova era, pela forma como os políticos mentem hoje em dia e pelas consequências devastadoras daí advenientes.
E o artigo inicia-se com um exemplo em si mesmo devastador: Donald Trump acusou em público Barack Obama e Hillary Clinton de serem fundadores do Estado Islâmico. Quando o repórter da rádio lhe perguntou se ele quis dizer que Obama era responsável pelo aparecimento do ISIS devido às suas políticas, ele voltou a confirmar: “Não, o que eu quis dizer mesmo é que ele é o fundador do ISIS.”, reafirmando que Hillary seria a co-fundadora! Estamos a falar de um candidato às eleições presidenciais da maior potência mundial…
Para muitos observadores, diz o artigo, este é um exemplo de que o mundo entrou numa era de “pós-verdade da política”. Uma era em que não interessa se as afirmações têm alguma relação com a realidade. O que interessa é incendiar os apoiantes!
Outro exemplo elucidativo: a forma como milhares de britânicos votaram a favor do Brexit com base em falsas afirmações como o facto de que pertencer à União Europeia custava ao Reino Unido cerca de 470 milhões de dólares por semana.
A diferença entre as mentiras dos políticos de hoje e dantes, é que antigamente a mentira tinha muitas vezes alguma relação com a realidade – mentia-se frequentemente para esconder um facto ou adiar a sua revelação. Hoje em dia, não há sequer esse tipo de preocupação de alguma relação com a realidade. Inventa-se e insinua-se ao bel-prazer e conveniência de cada um. E quando se é confrontado com a realidade, inventam-se teorias da conspiração. Evidências mostram que nunca as teorias da conspiração e falsas informações foram veiculadas em tão grande número ao redor do globo. O artigo cita exemplos em países como a Polónia, a Turquia, considerando a Rússia o país que mais longe foi neste processo de pós-verdade da política (excluindo, claro!, a Coreia do Norte).
Uma explicação para a popularidade desta nova era é o facto cientificamente provado de que os seres humanos não buscam de forma natural a verdade, e de que muitas vezes a evitam; as pessoas têm a tendência para tomar como verdadeira informação que lhes é familiar e procuram seleccionar informação que reforce as suas crenças, num processo que o psicólogo e prémio Nobel da Economia Daniel Kahneman chamou de “facilidade cognitiva” – resumindo, os seres humanos tendem a afastar-se dos factos que forçam os seus cérebros a trabalhar mais.
Ficou também provado que, amiúde, confrontar as pessoas com factos que deveriam servir para corrigir o que acreditam, acaba por reforçar as suas crenças, num processo que os investigadores chamam “backfire effect”.
Ao ler estas conclusões científicas que suportam esta teoria da era do pós-verdade da política, relembrei-me de várias experiências pessoais, designadamente quando, motivado por ímpetos de cidadania, me aventurei temporariamente na arena da política partidária. Ou das muitas tertúlias em que notei que há momentos em que as pessoas simplesmente não querem sequer saber de factos que confrontem as suas crenças pré-estabelecidas. Realmente, quando assim é, não há nenhuma diferença em estar a falar para uma parede. Aliás, há, como se diz, as paredes tem ouvidos…
Dois factores concorrem bastante para esta nova era, um dos quais é a tradicional falta de confiança que as populações depositam nos políticos, nivelando-os cada vez mais por baixo. O outro factor importante são as redes sociais, onde todo o mundo pode publicar o que bem entender. Uma ideia pode tornar-se viral de um momento para o outro, sem que ninguém se preocupe com a sua veracidade. Como consequência, pessoas com crenças comuns formam grupos (tribos), onde trocam informação que acaba por reforçar o que acreditam e onde o contraditório deixa de existir.
Um exemplo apontado é a campanha a que se dedicou Donald Trump, defendendo que Obama não nasceu nos EUA, e que tão fortemente mobilizou os seus seguidores. Após anos a alimentar essa campanha, há dias o mundo pôde assistir ao Sr. Trump a perder menos de um minuto para admitir tranquila e descaradamente que Obama nasceu nos EUA, passando de imediato a outros assuntos. Nem um pedido de desculpas, nada.
Tudo isto é reforçado com a forma como as plataformas informáticas das redes sociais estão concebidas. Começou com o Google, que, de forma “inteligente”, nos traz informação relacionada com o que habitualmente pesquisamos, e foi intensificado pelo Facebook, que nos selecciona conteúdos similares ao que temos “likado”.
O problema é que essas redes que não foram concebidas para seleccionar os conteúdos cuja veracidade seja comprovada. Estudos mostram que o facto de ser verdade, ou não, não influencia o modo como as informações circulam na internet, ou seja, não há vantagem em ser-se verdadeiro.
O fenómeno de não separar o trigo do joio não é restrito às redes sociais, atinge também os media, sobretudo os online. Os conteúdos são partilhados pelas pessoas, sem a preocupação de verificar se são de confiança. Tudo isso ainda é reforçado por media menos escrupulosos, cuja preocupação maior é a audiência. Quanto mais aberrações diz um candidato como Donald Trump, mais cobertura mediática a sua campanha ganha!
“A era do jornalismo neutro acabou”, afirmação feita em entrevista recente pelo chefe de propaganda do Kremlin, Dimitry Kiselyov. Esta frase diz muito…
Há, contudo, alguma esperança: esforços estão a ser feitos para mudar a forma como as redes sociais filtram informação, com base em mudanças tecnológicas, que esperamos sejam rápidas e eficientes.
O problema é como controlar os que mentem compulsivamente ou espalham, deliberadamente, inverdades num mundo em que os media competem ferozmente por audiências, das quais depende a sua sobrevivência.
Nas campanhas políticas, a coisa é bem pior. Quem não se lembra das célebres notas de 2 milhões de euros que circularam abundantemente nestas ilhas, das acusações falsas da “venda da terra” usadas para assaltar o poder? E, mais tarde, da negação de factos tão relevantes como a evidente decadência da qualidade do nosso ensino, com afirmações bombásticas de que os nossos professores são tão bons como os de alguns países desenvolvidos? Poderíamos ficar aqui o dia todo a citar exemplos desses.
Há alguns anos, um colega português dos tempos da universidade dizia-me que todos os cidadãos deste planeta deveriam poder votar nas eleições americanas. Estávamos no tempo da presidência de George W. Bush. Depois desse desastre, o povo americano votou num homem sensato e equilibrado, em contraponto ao cowboy texano que o antecedeu. Mas a sensatez tem as suas desvantagens neste mundo onde o populismo e a demagogia grassam como ervas daninhas. O perigo é esse jogo de alternância de estilos vir a favorecer essa bomba-relógio mundial chamada Donald Trump, um homem que nunca se importou com o bem comum.
Estamos numa era em que os que mentem, fingem, dão o dito por não dito, prometem o que sabem que nunca irão cumprir, aldrabam tudo e todos, ainda ficam com o bónus de serem considerados bons políticos. São esses os que ganham mais eleições e que prevalecem na política, qual cancro sem cura.
Pelo contrário, os que prestam um abnegado serviço à comunidade, que priorizam o bem-estar das pessoas e que têm pudor em viver de inverdades, são considerados maus políticos e não raras vezes são vítimas de calúnias infames.
Por cá, também tem sido esse o estado da arte da nossa política, da nossa mui elogiada democracia. Não é pois de admirar que os jovens com valor e potencialidades fujam da política activa como o diabo da cruz, um preocupante cenário para o futuro.
Não me serve de consolo saber que Cabo Verde não está sozinho nesta tragédia grega, e que por todo o lado populistas demagogos e sem escrúpulos vão somando sucessos eleitorais e desgraçando as respectivas nações e aparelhos partidários.
Não devia ser assim. A política deveria, acima de tudo, significar serviço público (e não mero exercício de poder), trabalhar em prol do bem comum e por isso mesmo não devia compensar os que, em última instância, são maus seres humanos.
A sorte das populações deste planeta é que, de tanto mentir e vomitar falsas promessas, os praticantes dessa modalidade acabam por se enredar no mundo de falsidade que criam e por não ter energias para se dedicar ao que realmente interessa, que é cuidar do bem-estar das pessoas. E acabam enxotados desse poder, que é a única coisa que lhes interessa. Quem entra pela porta do cavalo sai invariavelmente pela porta dos fundos…
Os antigos já diziam que a mentira tem perna curta e que o crime não compensa. Nesta nova era, o crime compensa, pelo menos temporariamente, e os meliantes lá vão conseguindo chegar ao poder.
Neste mui pouco admirável mundo novo em que vivemos, Maquiavel não passaria de um mero aprendiz de muitas figuras públicas que por aí andam…
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 773 de 21 de Setembro de 2016.
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