Aquela continência que Jair Bolsonaro prestou à bandeira norte-americana, em maio do ano passado, não era folclore, mas prenúncio.
Na tentativa de ajudar a reeleição do republicano Donald Trump, Jair Bolsonaro (sem partido) mostrou que sua lealdade pessoal ao presidente dos Estados Unidos pode ser maior que sua preocupação com os interesses de nossa economia.
Em sua avaliação, todo apoio dado nessa hora difícil será bem recompensado em caso de vitória do republicano. O problema é que um governo que se entrega de livre e espontânea vontade para ser vassalo de outro, não poderá nunca reclamar se não for tratado com o devido respeito. Mesmo assim, apoio é o que não tem faltado.
No dia 19 de outubro, em um evento de cooperação bilateral, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, sentiu-se à vontade de sugerir publicamente que o Brasil se afastasse comercialmente da China – nosso maior parceiro comercial. Claro, sem garantir que os EUA iriam cobrir o buraco comercial que seria deixado com isso.
Em Boa Vista, Roraima, em 18 de setembro, um encontro com Ernesto Araújo serviu de plataforma para Pompeo provocar a Venezuela – o que levou a oposição no Senado Federal a convocar o chanceler por ajudar a criar um factoide a fim de ser usado na campanha de Trump à reeleição.
No mês que passou, em meio à reta final da campanha eleitoral, quando Trump precisou reforçar que contava com aliados nessa disputa contra o gigante asiático, Brasil deu sinais de que pretende excluir ou limitar a participação da chinesa Huawei na escolha do sistema de 5G. Decisão que deveria se guiar por questões de mercado.
(Enquanto isso, bolsonaristas-raiz bombaram a teoria da conspiração de que a vacina chinesa contra o coronavírus pretende injetar nanochips de forma a monitorar e controlar as pessoas através do 5G da Huawei.)
A fim de ajudar Trump, que busca votos nos estados produtores de milho (matéria-prima do etanol por lá), Bolsonaro dificultou a vidas dos produtores brasileiros e etanol, que estão com estoques para gastar devido à redução do consumo na pandemia. Renovou a cota de etanol dos EUA que pode entrar aqui sem pagar imposto de importação – 62,5 milhões de litros/mês. Acima disso, o valor é a tarifa comum do Mercosul, 20%. A cota havia expirado em agosto.
E isso logo depois dos Estados Unidos terem reduzido a cota de aço semiacabado que o Brasil pode vender a eles sem tarifas – o total caiu de 350 mil para 60 mil toneladas para o quatro trimestre do ano. O motivo também foi pressão da indústria dos EUA sobre Trump, candidato à reeleição, por causa da queda de demanda devido à pandemia.
A questão que está em jogo aqui não é o livre comércio. Você pode ser a favor de que Brasil e Estados Unidos tenha uma relação de compra e venda sem tarifas para vários produtos – como já aconteceu com o etanol até os EUA darem um salto no total exportado para cá. A questão é que tudo soa como subserviente demais.
Bolsonaro teme que Trump saia do poder e o democrata Joe Biden o substitua, o que fragilizaria sua posição e reeleição. E, por conta disso, aceitou fazer o que for necessário. Inclusive entregar ao norte-americano o que estivesse ao seu alcance, passando por cima dos interesses dos brasileiros em torno de promessas de futuro. Promessas que podem ser como aquelas que ficaram no papel nesses dois anos de “parceria” entre os dois presidentes.
Na campanha eleitoral, Trump chegou a usar diversas vezes o governo de Bolsonaro como exemplo negativo no combate à covid-19, dizendo que os EUA poderiam estar mal, como nós, se ele não tivesse agido corretamente. Considerando que eles são campeões globais em número de mortes pela doença (232 mil), enquanto amargamos a segunda colocação (160 mil), isso é a suprema humilhação.
Nosso presidente inspirou-se nele para a propaganda da cloroquina como elixir salvador e para o negacionismo quanto à doença. A questão é que, em determinado momento, Trump fez alguns movimentos racionais porque percebeu que as dezenas de milhares de mortes iriam pesar nesta terça (3). E, quando ficou doente, nem ele declarou ter usado o medicamento que pregava – medicamento que não tem eficácia comprovada para tratamento da covid.
Como já disse aqui, a atual gestão do Itamaraty abandonou uma tradição de mais de um século de uma diplomacia independente em nome de migalhas que caem da mesa de um amigo. Amigo imaginário, claro.
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