A sucessão de violentos ataques armados a agrupamentos de inocentes, sobretudo crianças, que se tem verificado nos EUA, por exemplo em 14 de dezembro de 2012, numa escola elementar, matando vinte e seis pessoas, fez abrir naquele país um debate sobre a garantia constitucional de os cidadãos terem e transportarem armas.
O Presidente Obama, declarando que “estas tragédias devem terminar”, tentou alterar, por via legal, a famosa garantia.
Num excelente artigo, o jornalista Benoit Bréville avaliou no Le Monde Diplomatique o que lhe pareceu serem as raízes históricas da garantia constitucional, concluindo que esta nasceu para assegurar o direito de resistência aos governos despóticos, mostrando-se apoiante da intervenção presidencial, que não teve êxito.
Talvez não possa ser omitido que a marcha para o Pacífico, destino manifesto assumido pela Nação, foi apoiada nas armas, um procedimento que inspirou a produção cinematográfica glorificadora dos pioneiros, um apontamento que ajudaria a compreender que o abuso do direito, para não usar expressão mais severa, inverteu ou fez morrer na memória coletiva a intenção do legislador originário.
É interessante lembrar que o poder de recusa do legislativo quanto à proposta, ainda assim moderada, do Presidente não se manifestou em casos, recordados no mesmo estudo, como, após o atentado contra as Torres Gémeas, o governo autorizar a espionagem dos cidadãos sem mandato judicial, o regime de Guantánamo aplicável a presumidos delinquentes, a guerra sem aprovação mudando a semântica, e até, se as notícias tiverem fundamento, execuções extrajudiciais.
A bem fundada e oportuna intervenção crítica de Bréville talvez possa ser referida a um facto fundamental, que foi enunciado por Eirenhower no seu discurso de despedida da Presidência, e que foi o de ter governado um complexo militar-industrial que não conseguira dominar.
Além de ser uma despedida da Presidência, eram as palavras do general de cinco estrelas que comandara a libertação da Europa na Segunda Guerra Mundial. Trata-se de uma área onde o tremendo credo do mercado reclama, consegue e exerce a capacidade de fornecer as armas com que levantamentos atípicos e brutais vão provocando hecatombes sobretudo no antigo chamado terceiro-mundo, e equipando para feitos mais severos poderes emergentes. Designadamente às portas da Europa decadente cada dia se agravam mais evidentemente os motivos de alarme, servindo de exemplo a Síria e o consequencialismo já desenvolvido a partir de uma situação interna, e que já dá sinais de ter no programa o recurso a armas de destruição maciça.
A posse deste armamento por alguns dos países resulta do facto de o saber e o saber fazer circularem com uma liberdade que as cautelas legais não conseguem limitar, mas o mercado dispensa essa liberdade que substitui por entregas com chave na mão.
Naturalmente, o alargado direito de resistência contra o governo despótico, alegado como raiz da garantia constitucional americana, não precisa dela para se manifestar, porque o direito de resistência não apela necessariamente à lei como primeira legitimação, apela a uma pressuposta conceção do mundo e da vida que conduz a esquecer a lei vigente.
Na análise referida foram lembradas palavras de John Loccke, que pela Europa andam esquecidas, e que são as seguintes: “O povo suportaria, sem revolta nem murmúrio, certos erros graves dos seus governantes, de numerosas leis injustas… Porém, se uma longa sequência de abusos, de prevaricações e de fraudes revela uma unidade de desígnio que não passará despercebido ao povo, este toma consciência do peso que o oprime e compreende o que o espera: não devemos espantar-nos, então, que ele se revolte.”
No texto não consta nenhuma referência à tranquilidade que será inspirada pelos brandos costumes tradicionais.
Leave a Reply
You must be logged in to post a comment.