‘Orange is the New Black’ e a persistência de opressões e privilégios
A quarta temporada é escancaradamente politizada e captura bem o esprit du temps feminista (under Title)
O protagonismo desta série é indiscutivelmente das mulheres (under photo)
Já faz alguns anos que o que acontece de mais interessante e socialmente relevante no universo das produções audiovisuais se concentra em seriados – tanto os – more open na TV quanto os que consumimos sequiosamente via Netflix.
Desde Família Sopranos, série da HBO sobre uma família mafiosa que veiculou de 1999 a 2007, parece ser consenso entre a crítica especializada que o formato, hoje mais que o Cinema, captura e expressa o zeitgeist.
As aclamadas séries Breaking Bad e Mad Men, juntamente com Sopranos, são costumeiramente tratadas como a santíssima trindade desta era de produções televisivas que, com técnicas cinematográficas e roteiros astutos, primam por qualidade narrativa e se distanciam do modelo ordinário dos tradicionais enlatados.
Séries de TV costumavam ser vistas como puro entretenimento, mas hoje o modelo desempenha funções um pouco mais intelectuais, e uma das características mais marcantes desta fase dos programas seriados é a inclusão – em muitos deles – do pensamento e do discurso feminista.
Mad Men, sobre a indústria de publicidade na Nova York dos anos 1960, se sobressai por escolher expor as consequências negativas da cultura patriarcal nas vidas de todas as personagens do show. A série fornece tantos exemplos de situações em que o que chamamos de privilégio masculino e branco se revela, que ela chega a facilitar a compreensão do conceito para leigos.
O feminismo em Mad Men não é declarado, até porque na época em que a narrativa se dá, a dita segunda onda ainda não tinha estourado propriamente, e é apenas em um dos últimos episódios que um nome feminista aparece (o de Betty Friedan, que lançara A Mística Feminina em 1963).
Mas o pensamento feminista está embutido no processo criativo, e isso fica bastante evidente no desenrolar dos arcos das protagonistas – é impossível não reparar que os sucessos e fracassos profissionais de Joan Holloway, Peggy Olsen e Betty Draper estão indelevelmente imbricados nas relações de poder que informam suas relações com homens, no trabalho e em casa.
Mas se Mad Men se destaca, esta não é a única série a demonstrar como é possível inserir questões feministas em sua produção. Os seriados baseados nos quadrinhos da Marvel vêm representando mulheres de formas bem diferentes do papel feminino clássico das narrativas sobre super-heróis: saem as belas coadjuvantes que precisam ser salvas, entram protagonistas complexas e repletas de humanidade.
A relação entre Jessica Jones, super-heroína do seriado homônimo, e Kilgrave, seu algoz e arqui-inimigo na primeira temporada, é uma metáfora sublime para relacionamentos abusivos e a força necessária para sair deles.
Muitas outras séries lançadas nos últimos dez anos incorporam questões árduas de gênero em seus roteiros, e críticas feministas agudas podem ser encontradas também em produções de fora dos EUA, além de nos costumeiros enlatados de lá. Da sagaz mente de Tina Fey veio Unbreakable Kimmy Schimidt, comédia situacional que satiriza a vida comezinha da Nova York atual com personagens femininas hilariantes e completamente falhas.
A neozelandesa Jane Campion denuncia o patriarcado através da cultura do estupro no drama Top of The Lake, onde a facilidade com que feminismo vira culto também é abordada. E foi a série britânica The Fall que nos presenteou com Stella Gibson, quiçá a personagem escrita da forma mais competentemente feminista que se tem registro.
Mas talvez a série que mais explicitamente aborde questões sobre mulheres – e com uma honestidade brutal, tanto nas cenas dramáticas quanto nos momentos mais cômicos – seja mesmo Orange Is The New Black.
Para a espectadora novata, num primeiro momento pode até parecer que Orange Is The New Black seja sobre Piper Chapman, uma mulher branca e narcisista condenada por transportar dinheiro para sua namorada traficante, e que entra no complexo prisional via Penitenciária Litchfield, onde se desenrola a história.
Todavia logo fica evidente que a série na verdade é uma saga tragicômica sobre interações entre mulheres que vivem às margens da sociedade, lidando com a persistência de opressões e privilégios institucionais relacionados a gênero, etnia e classe social.
Esta descrição se aplica às três primeiras temporadas, e na mais recente – mais abertamente politizada do que as anteriores, e disponível na Netflix desde sexta-feira 17 de junho – questões de identidade cultural e tensões referentes a racismo e alteridade são testadas num novo e carregado contexto: superlotação, corporativismo selvagem, e a ascensão de um fascismo militarista no presídio recém-privatizado.
O show se manteve tocante, mas as fortes emoções que ele já costuma engendrar foram intensificadas nesta temporada, que está ainda mais sombria e bufa. A combinação entre a privatização do presídio e a enxurrada de novas prisioneiras foi perfeitamente utilizada pela série para evidenciar não somente a falta de ética que perpassa certas decisões corporativas, mas também para explorar as motivações por trás da violência que permeia a vida de pessoas sem privilégio social.
A inserção de novas detentas e da nova equipe correcional na narrativa dá continuidade ao hábito das criadoras da série de utilizar personagens como símbolos de estruturas sociais. Desde a primeira temporada, os papéis masculinos em especial são usados como arquétipos, estereótipos ou protótipos de grupos, instituições e posições de poder e privilégio patriarcais.
O diretor do cárcere, Joe Caputo, personifica bem esta simbologia, e é perceptível o quanto seu poder oscila de acordo com a situação: perante as detentas Caputo se faz de durão, mas diante de seus superiores ele geralmente encarna o executivo bobalhão.
Caputo é um ser humano complexo, mas o show deixa claro: ele é um homem em posição de autoridade, e apesar de sofrer para conciliar seu desejo genuíno de conferir bem estar às prisioneiras e a preocupação legítima em relação aos rumos de sua carreira, ele conta com um sistema social que vai validar ou mesmo glorificar suas ações e decisões mais egoístas.
O mais novo papel masculino, o do guarda prisional Desi Piscatella, concentra em si homossexualidades misóginas e personalidades com inclinações totalitárias, e é precisamente a sordidez deste fascista gay que inspira uma coalizão inesperada entre as detentas – reforçando assim o simbolismo da complexidade dos feminismos pós-modernos que a série parece pretender projetar.
As histórias das detentas sempre foram contadas através de suas interações na prisão e com flashbacks de suas vidas antes do cárcere, que escavam suas psiques e as conferem um caráter mais humano e menos institucional – o que avigora que o protagonismo desta série é indiscutivelmente das mulheres.
Uma detenta que foi introduzida nesta temporada, no entanto, personifica alguns sistemas sociais. Judy King, personagem que emula Martha Stewart (uma Ana Maria Braga estadunidense, que foi sentenciada a cinco meses de prisão, em 2004, por envolvimento em um escândalo no mercado de ações) simboliza o poder que reside nas – e emana das – mãos de celebridades.
King é racista e egocêntrica, abusa do domínio que sua fama impõe até mesmo sobre os funcionários da cadeia, e assim encapsula a cegueira e a inclinação dominante que são inseparáveis do privilégio branco e rico.
Orange Is The New Black não tem medo de problematizar questões espinhosas, e as roteiristas chegam a exagerar na adição de camadas que conferem complexidade às já polêmicas situações.
Os argumentos sobre semântica religiosa que aconteceram na quarta temporada entre a judia convertida Cindy Hayes e sua nova companheira de cela, que é muçulmana, dissipam dúvidas com as quais gentios sempre questionam os dois dogmas, mas como o diálogo se dá entre duas mulheres negras, o sentido pesado da histórica inimizade é completamente deslocado, e é o humor surreal da cena o que facilita a abordagem de tema tão denso.
Fantasias românticas também são desconstruídas, especialmente através do idealismo ilusório de Lorna Morello, que agora está casada com um marido que mal vê, mas cuja cena da visitação – particularmente vívida e carregada de tensão sexual, emoção e vergonha alheia – nos leva a ter empatia com os devaneios amorosos oriundos de sua solidão.
Sexualidade e romances interraciais também compõem o pacote de tópicos abordados nesta temporada, e confesso que ao assistir a breve altercação entre Big Boo e o casal Poussey Washington e Brook Soso imaginei que Judith Butler ficaria feliz com o tensionamento entre gênero, sexualidade e raça que a cena faz.
A asiática Soso diz se apaixonar por pessoas e não gêneros, e namora Poussey, negra e declaradamente lésbica; enquanto ensaiam um jogo informal de basquete, as duas são interpeladas por Boo, a sapatona mais dyke da série, que é branca, e que pede que a “gracinha de sexualidade fluída” saia da quadra para que os “homens de verdade” possam jogar.
Nos poucos minutos em que a cena se dá, a série ratifica o que a teoria de gênero propõe: questões de sexualidade e identidade são melhormente compreendidas na seara do social do que em função de biologia.
O fato de que todas as participantes da cena eram mulheres, e de que a orientação sexual de todas era lésbica, não impediu que um atrito esportivo fosse retoricamente pautado pela sexualidade e identidade de gênero das participantes. A vida é complexa, e onde há relações de gênero, há relações de poder…
Sofia Burset, a presidiária trans da série que fez de sua atriz – a também transexual Laverne Cox – uma pop star internacional, terminou a terceira temporada na solitária, e é lá que ela passa a maior parte da quarta.
Sua relativa ausência pode ser compreendida como analogia para o apagamento social de pessoas trans, e a pichação na parede das alas comuns, onde se lê que “Burset tem um pau”, corrobora com essa interpretação: nesta temporada, o pouco tempo de cena de Sofia reflete a baixa recepção social para subjetividades trans, que quando não são aniquiladas, tendem a ser invisibilizadas ou forçosamente reconfiguradas por causa de sua fisiologia.
Saúde mental também foi um tópico bastante explorado, e se Suzanne “Crazy Eyes” Warren foi o papel que personificou instabilidades psíquicas ao longo das três primeiras temporadas, nesta última as questões de sanidade foram bem exploradas em outras personagens.
A aproximação entre a detenta Lolly Hill e o oficial prisional Sam Healy, que se dá em função de os dois compartilharem histórico de psicoses, resgata a humanidade de ambos e relembra a audiência de que loucura não é crime.
Mas o tema central desta mais recente temporada são relações raciais e étnicas. Tendo a campanha #BlackLivesMatter como pano de fundo, a série não desperdiçou a oportunidade de demonstrar a velocidade com que argumentos anti-racistas são resignificados – e diante das tensões que se acumulam no presídio lotado, não demora para que um grupo neonazista se forme por ali, trazendo retrocesso até mesmo para os confins do já ultrapassado sistema penal.
O aumento no número de detentas também significou que as latinas agora formam a maioria, mas isso não se traduz para supremacia: os flashbacks de Maria Ruiz, Maritza Ramos e Blanca Flores, bem como seus empreendimentos financeiros no cárcere e os xingamentos trocados entre elas (que se referem às cubanas como “Bacardi Bitches”), explicitam muitas das tensões entre linhagens latinas que vemos acontecer com as detentas.
A série – que pode e deve ser vista de uma só vez, pois já está inteiramente disponível – aborda questões difíceis sem torná-las desagradáveis, e consegue fazer piada de absolutamente todos os cuidados politicamente corretos que costumamos tomar.
Um dos diálogos envolvendo a sensacional cozinheira russa Galina “Red” Reznikov, resume este espírito: ao transformar a marcação à ferro de uma suástica, feita em uma das detentas, em um quadrado contendo uma cruz, ela diz: “Quando Deus te dá uma suástica, ele abre uma janela. Daí você lembra: Deus não existe”.
Mas a Deusa sim. E ela adora Orange Is The New Black
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