Sob a bandeira do patriotismo, Trump conduz mundo para “lei da selva”
A maior democracia do mundo ainda tem algum respeito pelo direito internacional?
JAMIL CHADE
06 JAN 2020 – 18:51 EST
Qasem Soleimani não era exatamente o que podemos chamar de um anjo da paz. Basta perguntar às populações do Iêmen, Síria ou Iraque, muitas das quais aliviadas com sua morte. O Governo do Irã é de fato um elemento de extrema instabilidade e reprime sua própria população em nome do poder.
Mas o assassinato em um território estrangeiro por um drone pilotado centenas de quilômetros de distância abriu uma outra questão entre governos estrangeiros: a maior democracia do mundo ainda tem algum respeito pelo direito internacional?
Além das consequências que a tensão entre os Irã e EUA podem abrir a partir de agora, nos círculos internacionais a constatação é de que o ato que inaugura a nova década pode servir como o marco da consolidação da lei da selva no cenário internacional. E as consequências podem ser dramática para populações em diferentes partes do mundo.
Sem apresentar provas, sem avisar aos aliados, violando a soberania de um outro país e até mesmo comemorando nas redes sociais com símbolos patrióticos, o governo americano sabe que ficaria impune ao realizar o ataque. E é exatamente esse aspecto que, nos corredores da ONU, preocupa embaixadores e mediadores.
Não são poucos os governos que se recusam a jogar pelas regras. A invasão da Rússia em território da Ucrânia, o financiamento de milícias por países árabes e até a perseguição de minorias em Mianmar ou na África são exemplos explícitos de violações.
Mas torna-se ainda mais irresponsável o precedente quando ele é orquestrado pelo símbolo do “mundo livre”. Pelo país que, por anos, exigiu que as regras internacionais fossem cumpridas. Pelo país que pensou, criou e pagou pela ONU e seu arcabouço de leis.
Ao ignorar as regras estabelecidas ao longo de décadas, Trump abriu as portas para que outros sigam o mesmo caminho. O próprio regime de Teerã anunciou que, diante do novo cenário, estaria abandonando o acordo nuclear. Não seria uma surpresa se, ao longo dos próximos meses, governos com posições antagônicas busquem valer seus interesses pela força. E não pelo direito ou diplomacia.
Mas o que ocorreu em Bagdá não foi apenas uma violação de uma soberania nacional, termo que paradoxalmente é tratado como sacrossanto por Trump. Ao acenar que pode atacar locais culturais do Irã, o governo americano inaugurou uma nova modalidade: o anúncio de crimes de guerra pelas redes sociais. Uma vez mais, em total impunidade.
A decisão de esnobar as regras da civilização não foi um ato isolado. Ao longo de meses, o governo americano vem proliferando sanções unilaterais cada vez mais duras contra inimigos, algo ilegal.
O argumento é o de que tais governos estariam sofrendo uma resposta pelo abuso aos direitos humanos ou por reprimir suas populações. Mas a explicação explicita sua incoerência quando a mesma sanção não é aplicada contra ditaduras que, apesar de tão sangrentas como as demais, são consideradas como aliadas dos americanos.
Paralelamente, Trump desmontou acordos nucleares com os russos, deixou tratados sobre o clima, abandonou entidades internacionais e cortou verbas para operações da ONU.
No ano passado, a Casa Branca deu mais uma demonstração de que as leis podem ser desrespeitadas, sempre que o interesse nacional falar mais forte. Violando resoluções do Conselho de Segurança da ONU, Trump ainda reconheceu a anexação de parte de Jerusalém e das Colinas de Golã por Israel.
No final de 2019, ele promoveu mais um golpe contra o multilateralismo: paralisou o tribunal da OMC e deixou o comércio internacional sem juízes que possam determinar se uma economia está ou não violando regras básicas.
O comércio, assim, entrou numa era da lei da selva. Hoje, na prática, quem aplicar uma barreira ilegal contra um vizinho simplesmente sabe que permanece impune.
Ao tomar esse caminho de promover um desmonte do sistema internacional — no comércio, na segurança e no clima — Trump mina o conjunto de regras criadas a partir de 1945 que permitiu o que provavelmente foi a maior expansão do índice de desenvolvimento humano da história e um ritmo inédito no avanço da globalização. E o grande vencedor foi justamente a economia americana.
Para os próximo 50 anos, o que estará em jogo será a disputa entre EUA e China pelo protagonismo internacional e hegemonia. A Casa Branca sabe que precisa construir um novo sistema se quiser manter sua posição.
Mas sob as sombras da bandeira de um patriotismo míope e dentro de uma lógica eleitoral, Trump abre precedentes perigosos neste início de década de 20.
Quem o seguir cegamente poderá ter a ilusão de estar do lado do campo mais forte. Mas, paradoxalmente, estará contribuindo para desmontar um sistema que, ainda que profundamente imperfeito, permitiu 70 anos de regras mínimas de convivência, da ilegalidade da guerra e de direitos básicos.
E, no dia em que ver os interesses — e os canhões — americanos se voltarem contra ele, não terá mais a lei para se defender.
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
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