The Critical Debate

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É bom que comecemos a alinhar expectativas. O desanuviamento diplomático proposto por Joe Biden é bem acolhido na Europa, mas ninguém está disponível para agir como se os últimos quatro anos não tivessem existido. Alemanha à cabeça. A recente sondagem do ECFR, feita a 15 mil europeus em 11 Estados, Portugal inclusive, coloca os alemães com a sensibilidade à flor da pele: a desconfiança com os EUA aumentou, será inevitável a predominância da China, o sistema político americano partiu-se, cresceu a vontade em autonomizar estratégias. Ou, como é mais comum dizer-se no léxico da comunidade alemã que faz e conduz a política externa, reforçou-se a ideia da “soberania europeia”.

Acresce a esta aferição duas variáveis não negligenciáveis e que mostram como é a relação Washington-Berlim marcante no mandato da nova administração. A primeira diz-nos que está mais ou menos enraizada na primeira linha dos decisores alemães (CDU, SPD ou Verdes) a ideia de que Biden pode ser apenas um intervalo de normalização num mais estrutural fio condutor de imprevisibilidade americana. Por outras palavras, o que aconteceu nos anos Trump foi demasiado marcante para ser apagado de um dia para o outro, além de poder regressar nas intercalares de 2022 e nas presidenciais de 2024. Considerar a União Europeia (UE) um inimigo, favorecer o hard Brexit, valorizar as lideranças autoritárias, ter a imprensa e a verdade como inimigas, aprovar unilateralmente taxas aduaneiras, fazer bullying constante a aliados, ou mover tropas sem consulta prévia, foi um roteiro demasiado duro para passar à história com um assomo de otimismo. É verdade que o acolhimento a Biden é genuíno, que as primeiras e segundas linhas da administração carregam um histórico transatlântico autêntico e estão interessadas em trabalhar com os europeus, maximizando poder em frentes consideradas comuns, com a China à cabeça. Acontece que esta segunda variável é bem mais complexa do que muitos esperariam.

A dificuldade em unificar uma política euro-americana para a China foi o grande cartão de boas-vindas que antecedeu a tomada de posse de Biden. Em Berlim, considerou-se imprescindível fechar o ciclo de sete anos negociais com Pequim para sinalizar a preponderância alemã nas decisões europeias pós-Brexit e a independência decisional em relação a qualquer rumo que Washington venha a dar ao tema. Jake Sullivan, o novo conselheiro de Segurança Nacional do presidente Biden, disse publicamente que esperava ter sido consultado antes de ver firmado o princípio de acordo de investimento entre a UE e a China, uma tirada que esquece o que Trump fez à Europa quando tomou unilateralmente as mais variadas decisões comerciais sobre a China. A ideia de que Pequim é a prioridade bipartidária na América e que, tirando mudanças na forma, pouco ou nada mudará estrategicamente entre as administrações Trump e Biden é um eixo de peso no raciocínio dos decisores alemães, continuidade pragmaticamente assumida pelo novo secretário de Estado, Anthony Blinken, na audição que protagonizou nesta semana no Senado.

Ora, Berlim e outras capitais europeias, entre elas Lisboa, consideram que o método e a finalidade do relacionamento com a China deve ter um selo europeu mais pronunciado e distinguir-se do modelo americano. Por um lado, acomodar a ascensão chinesa da forma menos confrontacional possível, europeizando a negociação, partindo do princípio de que a influência regulatória e normativa da UE é uma força geopolítica capaz de, no tempo, moldar o comportamento interno e externo da China. Isto é válido para a frente climática, a liberdade comercial, a reciprocidade empresarial, a responsabilidade na eficácia das organizações internacionais, a reforma da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou a estabilidade dos mercados financeiros. Admito perfeitamente que é uma postura excessivamente otimista e que os últimos vinte anos trouxeram mais amargos de boca do que o inverso. A hegemonia imperial de Xi Jinping reforça esta ideia. De qualquer forma, é uma via legítima, que não arrasta uma oposição tão agregadora e estridente quanto isso entre os decisores europeus, e que é obviamente marcada pela liderança alemã. Não é por acaso que Angela Merkel visitou a China em praticamente todos os 15 anos que leva na chancelaria.

Em Washington, o roteiro é distinto. Menos cínico, mais cru. Foi assim com Trump e será assim com Biden, apesar das diferenças esperadas na forma. Mas Blinken já falou no Senado de “genocídio” em Xinjiang, concordando com boicotes comerciais e sanções, dureza no relacionamento, assumindo a oferta de um modelo político totalmente distinto capaz de não perder mais terreno perante o avanço internacional do autoritarismo e do capitalismo de Estado. Acelerar a inserção de Taiwan nos fóruns internacionais é outro objetivo, reforçado pelo convite ao seu representante diplomático em Washington para estar presente na investidura de Biden, o que aconteceu pela primeira vez na história. Destas distintas abordagens euro-americanas resulta uma conclusão: para que a influência sobre a China seja maximizada vai ser preciso fazer um caminho de aproximação entre os dois modelos: o europeu tornar-se menos cínico ou pragmático, o americano pautar-se por menos agressividade e cerco estratégico.

Objetivamente, é difícil dizer se existem sequer condições para um chão comum nestes primeiros meses de administração Biden. Talvez seja preferível não cristalizarmos nas posições de partida e focarmo-nos nos eixos onde o entendimento prático é exequível, sem estarmos reféns da realização de grandes encontros transatlânticos: massificação da vacina com cooperação industrial até ao verão, metas mais ambiciosas para a cimeira do clima em novembro, passos concretos na reforma da OMC e da Organização Mundial da Saúde, trabalhar um Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento mais minimalista e que coloque a regulação digital no centro, assegurar a reeleição do secretário-geral da ONU ou assumir o desafio chinês no debate interno da NATO através da criação, como já aqui defendi, de um Conselho NATO-China.

A agenda transatlântica é imprescindível à coesão europeia e à superação de vários desafios da globalização. É também um contributo para ajudar a administração Biden, que, com um país ferido, precisa mais do que nunca que as alianças funcionem rapidamente e bem. As escolhas que Portugal fizer nestas várias frentes ditarão não só o seu lugar na indispensável relação com Washington, reaberta pelo Brexit e pela continentalização da política europeia, o seu espaço político na União Europeia, e a sua relevância geopolítica numa década marcada pelas tensões sino-americanas, pelas divergências europeias e pelo potencial africano.

Precisamos de discutir tudo isto com a responsabilidade que o momento histórico exige.

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