A moda agora é generais e almirantes aposentados produzirem cartas abertas críticas dos governos dos seus países. Aconteceu também nos Estados Unidos da América com uma nova carta assinada por 120 generais e almirantes norte-americanos, reformados.
Começam estas altas patentes por dizer que a nação norte-americana está “em grande perigo” e que há um conflito no país entre “partidários do socialismo e do marxismo” contra os “defensores da liberdade”. Não estou alucinado, é mesmo isto que lá está.
Recordam estes militares que no ano passado 317 generais e almirantes reformados já tinham assinado outra carta sobre as eleições de novembro, em que avisavam que “com o Partido Democrata a dar as boas-vindas a socialistas e marxistas, o nosso modo de vida histórico está em jogo”.
A seguir põem em dúvida que tenha havido “eleições justas e honestas que reflitam com precisão a ‘vontade do povo'”. Censuram o FBI e o Supremo Tribunal por terem “ignorado” as alegadas fraudes, acusam as propostas de reforma eleitoral em debate nos Estados Unidos de irem “destruir a justiça eleitoral” e de permitirem que os democratas “permaneçam para sempre no poder”.
Atiram-se ainda a Joe Biden, à sua “condição mental e física”, à sua aptidão para decisões militares, à sua capacidade em manter o controlo pessoal do armamento nuclear do país.
Criticam duramente as 50 ordens executivas de Biden que inverteram decisões de Donald Trump e as “ações de controlo da população, como bloqueios excessivos, encerramentos de escolas e negócios, e a mais alarmante: censura da expressão escrita e verbal” – suponho que se referem às medidas anticovid.
Estas antigas altas patentes das Forças Armadas norte-americanas, que devem refletir o sentimento de muitos congéneres no ativo, falam mesmo em “tirania” e repetem que estão contra “o socialismo, o marxismo” e todas as ideias “progressistas”.
Aos cidadãos norte-americanos os signatários apelam a que passem a eleger “candidatos ao Congresso e à Presidência que ajam sempre em defesa da nossa república constitucional”.
Esta tropa aposentada lista ainda “questões e ações adicionais de segurança nacional”, onde se incluem: fecho de fronteiras para a imigração ilegal; acabar com a censura nas redes sociais e responsabilizar as tecnológicas pelos conteúdos publicados; aumento de sanções e restrições à China; não aceitar a negociação de um acordo nuclear com o Irão; sabotar eventuais acordos China-Irão; reforçar o apoio a Israel; abrir o oleoduto de Keystone para diminuir a dependência energética do país; acabar com o “politicamente correto” e as questões de raça e género nas Forças Armadas; acabar com a “anarquia” nas cidades, dando mais poder à polícia.
Esta ideia de que o socialismo e o marxismo estão a triunfar na América seria, dadas as minhas convicções ideológicas, algo que gostaria que fosse verdade. Não é, como é óbvio.
O que leio é uma evidente desorientação de pessoas que serão patriotas mas que não perceberam que o mundo que ajudaram militantemente a construir – trabalhando para derrubar o bloco soviético e definindo a atual ordem mundial – fugiu do seu controlo.
Agora, baralhados com os resultados da globalização, que criou novos poderes que não lhes obedecem, e com uma vida política decidida no Twitter, procuram encontrar um inimigo que consigam perceber.
Regressam assim à retórica do senador McCarthy dos anos de 1950, no tempo da guerra fria, e à denúncia de um hipotético comunismo infiltrado no Estado norte-americano: só lhes falta promover a nova “caça às bruxas”.
Porém, lendo todas as exigências e todas as queixas deste generais e lendo, ao lado, declarações de Biden como a que chamou “assassino” a Putin ou a que deu 90 dias a uma comissão para poder acusar a China de ter criado a covid-19 (atitudes dignas da retórica incendiária de Donald Trump, antigo presidente que estes generais tanto parecem admirar), o que prevalece é mais continuidade do que rutura. Em matéria de segurança e economia internacionais, então, isso parece-me claro.
A carta destes militares, porém, demonstra a fragilidade interna de Biden e releva esta ironia perigosa: a potência que quer mostrar ao mundo ser ela quem manda está afinal cheia de problemas para pôr os seus próprios militares na ordem.
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