America and Global Democracy

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Na sua primeira viagem à Europa depois de eleito, o presidente dos EUA, Joe Biden, prometeu aos seus parceiros liderar o combate global pela democracia, atualmente ameaçada por uma clara deriva autoritária em todo o mundo. Trata-se, no fundo, de reciclar uma narrativa que a hoje maior potência mundial sempre soube elaborar e difundir, por todos os meios, desde a sua fundação: a ideia da América como farol da democracia, exemplo a seguir por todos os povos.

Não recordarei como essa ideia e a própria democracia americana assentaram, historicamente, no extermínio dos povos originários do território onde foram constituídos os Estados Unidos da América, bem como no odioso sistema da escravatura. A sociedade americana continua hoje a tentar reescrever essa história, reparando os males do passado, o que, há que reconhecê-lo, é admirável e positivo. Um exemplo, sem dúvida, para outras nações, como o Brasil, que também precisam de reparar o pecado original sobre o qual foram fundadas – a segregação -, reinventando-se.

A maka é que a disposição do atual presidente americano em relação à defesa da democracia global tem dois problemas: primeiro, parece apontar apenas para os “inimigos externos”, sobretudo a China, como estando por detrás, supostamente, das atuais derivas autoritárias que estão a ocorrer em todo o mundo; segundo, e ao contrário da sua promessa de retorno ao multilateralismo, não parece igualmente considerar a necessidade de envolver nesse “bom combate” os organismos internacionais, como a ONU ou as organizações políticas regionais, antes atribuindo ao G7 e à própria NATO – duas instituições criadas pelo Ocidente para defender os seus interesses particulares e específicos – o papel de promotores da democracia.

O ponto, entretanto, é que, talvez antes de pensar em liderar a luta pela defesa da democracia global, à revelia das instituições multilaterais e – “detalhe” decisivo, que a mentalidade imperial tende a ignorar – dos próprios cidadãos dos países onde ela não existe ou está em perigo, a atual administração americana tem de olhar para dentro de casa

Com efeito, e como escrevi aqui na semana passada, a democracia nos Estados Unidos está sob ataque das forças da extrema-direita, representadas pelo trumpismo. Esse ataque não foi completamente derrotado com a vitória de Biden nas últimas eleições. A confirmá-lo, 18 estados locais de maioria republicana aprovaram, na primeira metade desse ano, legislação visando dificultar o exercício de voto por parte dos cidadãos. Claramente, o que se passou na Geórgia e no Arizona no último pleito, onde a mobilização e organização dos movimentos sociais permitiu uma surpreendente reviravolta eleitoral (além de Biden ter ganho nesses estados, os democratas conquistaram também os quatro lugares para o Senado), fez soar o alarme entre os republicanos: é preciso impedir a todo o custo o avanço do voto urbano e das diferentes minorias.

Ou seja, a administração americana, se quer realmente liderar a luta pela democracia global – necessária e justa, diga-se -, tem primeiro de derrotar a ameaça da extrema-direita local. Isso não diz respeito apenas aos Estados Unidos, pois está em curso um processo de articulação e alianças da extrema-direita em todo o mundo, liderada pela alter right americana.

Os velhos autoritarismos, grotescamente inspirados nos modelos “soviéticos” ou “maoistas”, têm os dias contados, pois há muito perderam a batalha ideológica; além disso, a sua opção ou cooptação pelo capitalismo torna impossível a eternização dos velhos modelos políticos em que assentam. O principal risco para a democracia, hoje, são os novos autoritarismos, inspirados pela extrema-direita americana.

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