Providence, Rhode Island, EUA. — É fim da manhã na América, e há poucos minutos os estado-unidenses que estivessem a prestar atenção à televisão puderam ver uma coisa insólita: a visita à Casa Branca dos líderes democráticos na Casa dos Representantes e no Senado, para uma foto de circunstância, acabou numa briga verbal ao vivo entre o Presidente Trump e o Congresso, sob o olhar (e o silêncio) do vice-presidente. No fim da conversa, Trump ameaçou o Congresso e o país com o encerramento da administração federal — “government shutdown”, na terminologia daqui — caso não lhe dêem dinheiro para ele fazer o seu muro na fronteira com o México (que ele prometeu em campanha que seriam os mexicanos a pagar). Vale a pena citar diretamente a sua tirada perante Chuck Shumer, líder dos democratas no Senado, ao vivo e perante as câmaras: “Sabes que mais, Chuck? Tens toda a razão. Se eu não tiver aquilo que eu quero, de uma forma ou de outra, seja através de vocês [no Congresso], através dos militares, ou seja como for, eu fecho o governo. E fecho o governo com orgulho”.
Quando isto aconteceu, o outro tema nas primeiras páginas dos jornais e nos alinhamentos dos noticiários era — coisa rara e reveladora num espaço mediático que só fala do que se passa no resto do mundo quando há uma catástrofe — o “Brexit”. Os comentadores habituais dos canais americanos têm dificuldade em explicar os pormenores do processo de saída do Reino Unido da União Europeia (e quem não tem?) mas percebiam o suficiente do assunto para perceber que Theresa May retirou a sua proposta de acordo do Parlamento britânico e se lançou de novo num périplo por algumas capitais europeias para implorar por uma qualquer concessão que lhe permitisse salvar face, e que nada disso se parece nem de longe com a reafirmação de soberania que o “Brexit” era suposto ser.
Se os americanos seguissem as notícias do Parlamento britânico como seguem as da Casa Branca talvez tivessem visto um outro vídeo que era talvez tão extraordinário quanto as imagens da discussão entre Trump e o Congresso dos EUA. Em Londres, no Parlamento, o número 2 do governo de Theresa May apelava aos deputados para que votassem a favor o acordo que a sua chefe conseguira até que o Presidente do Parlamento (do mesmo partido que o ministro) se vê forçado a notar: “deixem-me apenas dizer ao senhor ministro, a quem tenho estado a ouvir com muito cuidado, que é difícil votarmos a favor de qualquer coisa se vocês se recusam a trazer essa coisa a votos”, para depois acrescentar perante as risadas dos deputados, “gostaria muito de poder ajudar o honorável cavalheiro, mas esta é uma realidade tão óbvia que até me espanta ter de a mencionar; mas pelos vistos tenho de fazê-lo”.
Este duplo episódio transatlântico permite-nos desvendar uma importante novidade do projeto nacional-populista que levou de vencida o Reino Unido e os EUA em 2016. Os brexiteiros, e depois Trump, eram supostos defensores da soberania popular, e em particular da supremacia parlamentar, nos seus respectivos países. Afinal vemos que não era de todo assim. À primeira vista de dificuldades, não é contra as instituições supranacionais que eles se posicionam. É contra o próprio Congresso dos EUA e contra o Parlamento de Westminster. Por isso Theresa May foi a tribunal contra a possibilidade de apresentar qualquer acordo com a UE ao parlamento que sustenta o seu governo, e mesmo tendo perdido em tribunal, mais facilmente retirou a proposta do acordo de “Brexit” de votação do que aceitou ouvir o que o seu parlamento lhe teria a dizer. E por isso Trump faz birra em frente às câmaras de televisão, confrontando o Congresso com a ameaça de fechar o governo ou a insinuação de que conseguirá que o Exército lhe faça aquilo que o Congresso não quer aprovar.
Por detrás desse desprezo pelos parlamentos está um facto inconveniente que os nacionais-populistas tentaram ocultar por detrás da sua retórica: o desprezo pelo povo e pelo seu voto. Na verdade, os nacionais-populistas só gostam do povo para subir ao poder. Quando o povo muda de ideias e vota de outra maneira, como aconteceu nas eleições em que Theresa May perdeu a maioria ou nas recentes eleições congressionais nos EUA, os nacionais-populistas proclamam que a “verdadeira” vontade popular é a última que lhes dá jeito: a vontade popular de 2016 é ótima; a de 2018 têm medo de perguntar.
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