Estados Unidos sempre foram ingênuos com realidades tribais
Uma pessoa assiste à retirada das últimas tropas americanas no Afeganistão e pergunta: foi para isso?
Sim, foi para isso que invadiram o país em 2001, gastaram bilhões de dólares, provocaram a morte de 50 mil civis afegãos e 3.500 soldados da coligação? Para que o Taleban possa regressar em força —e, dessa vez, com aliados em Pequim, Teerã e Moscou?
E as perguntas continuam: que será dos pobres afegãos que colaboraram com os Estados Unidos e seus aliados?
Sabendo que o programa de vistos para que eles possam sair do país é moroso e limitado, não é preciso ter uma imaginação macabra para saber qual será o destino dessa gente.
Verdade que nada do que sucede agora é novidade. Em 2001, a vitória foi fácil. Mas foi temporária: a partir de 2006, o grupo começou a sair das suas cavernas no Paquistão para retomar as hostilidades e reconquistar o território.
Quando Barack Obama chegou ao poder, já só existia uma prioridade: fugir.
Haverá várias explicações para este desastre épico. Mas uma delas, talvez a mais importante, lida com a ingenuidade dos Estados Unidos quando estão em causa realidades tribais.
Um livro de Amy Chua, que deveria ser leitura obrigatória em Washington, explica esse calcanhar de Aquiles com paciência pedagógica. O título é “Political Tribes: Group Instinct and the Fate of Nations”, da editora Bloomsbury.
O problema, argumenta a autora, é a visão redutora que preside a política externa americana. Tudo é concebido em termos simplórios —o bem contra o mal; a luz contra as trevas— ao mesmo tempo que o modelo democrático ocidental é considerado universal e exportável.
Se os americanos, apesar das suas múltiplas origens nacionais ou étnicas, se tornam “americanos”, por que motivo os sunitas, xiitas ou curdos não podem virar “iraquianos”? Por que motivo os pashtuns e os tadjiks não podem virar “afegãos”?
Sem falarmos da ingenuidade de Obama, que depois da queda de Gaddafi na Líbia afirmava que o futuro do país estava finalmente nas mãos dos “líbios”. De quem?
Não existem “líbios”. Existem 140 tribos diferentes e uma guerra civil como resultado.
Mas o interesse do livro de Amy Chua está no fato de ela abrir o foco e recuar até o primeiro dos traumas americanos: o Vietnã, claro.
Usando as lentes da Guerra Fria, o conflito do Vietnã não tem complexidade: de um lado, a democracia; do outro, o comunismo. Perder o Vietnã era entregar o país à China.
Longe de mim desprezar a dimensão ideológica da luta, que era fundamental. Mas, nessa visão, um pormenor escapou aos estrategos: o nacionalismo vietnamita era estruturalmente antichinês. Historicamente, a identidade vietnamita construiu-se por oposição à supremacia da China (que governou o país durante mil anos).
Mas essa oposição não era apenas histórica; era presente. Como escreve Amy Chua, a minoria de ascendência chinesa no país —os hoa— era política e economicamente dominante. Assim foi com a colonização francesa.
E assim continuou no sul do país, com a intervenção americana. Para os vietnamitas do sul, derrotar Ho Chi Minh não era apenas derrotar um inimigo comunista, o que seria louvável. Era também entregar o país a uma elite chinesa e corrupta que só por piada era um símbolo da democracia.
Quando os Estados Unidos condenavam a relutância dos vietnamitas do sul em contribuir para o esforço de guerra, isso se devia ao fato de não compreenderem a hostilidade etnonacionalista do Vietnã perante a China.
Não admira que, depois das últimas tropas americanas deixarem Saigon, o regime comunista começou a perseguir e a eliminar os supostos “camaradas” chineses. Em 1979, o Vietnã e a China estavam em guerra —e não apenas pela proximidade entre o Vietnã e a União Soviética. Os ressentimentos vinham de longe.
É dessa ignorância que se alimentaram as campanhas no Oriente Médio. Punir o Taleban pelos ataques de Osama bin Laden é uma coisa.
Outra, ligeiramente mais lunática, era acreditar que o Iraque poderia ser a segunda democracia liberal da região, depois de Israel.
Sou velho o suficiente para recordar esses debates neoconservadores: se a Alemanha e o Japão eram regimes autoritários e viraram democracias de sucesso, por que não tentar o mesmo com o regime de Saddam Hussein?
A resposta, muito bem lembrada por Amy Chua, é que a Alemanha e o Japão eram etnicamente homogêneos. No Iraque, afastar os sunitas (minoritários) e entregar o país aos xiitas (majoritários) só poderia ter como resultado o Daesh e outras aberrações do mesmo gênero.
O mesmo vale para o Afeganistão. Que o Taleban é um grupo medieval e fanático, ninguém duvida, embora tenha criado escola no Ocidente com a moda do derrube de estátuas.
Mas também ninguém duvida, ou não deveria duvidar, que o Taleban existe pelo patrocínio do Paquistão e pelo apoio de uma parte substancial da população pashtun, majoritária no país, e que teme sobretudo a minoria tadjik e uzbeque —que governou o Afeganistão entre 1992 e 1996, até o golpe do Taleban.
Quando sabemos, hoje, que o chamado Exército afegão é esmagadoramente composto de tadjiks, alguém se espanta com a aparente facilidade (e cumplicidade) com que o Taleban avança, sobretudo no sul rural (e pashtun) do país?
Um dia perguntaram a Gandhi o que ele pensava da “civilização ocidental”. Ele respondeu: “Acho que seria uma boa ideia”.
Não sou tão cético: ainda acho que a “civilização ocidental” —a democracia, os direitos humanos, a separação de poderes, a autonomia individual etc.— é uma boa ideia. Que, com suas imperfeições, lá vai fazendo o seu caminho nesta parte do mundo.
Mas não tenho ilusões neoconservadoras de que essa boa ideia pode florescer em solo estranho, sobretudo quando as identidades tribais são mais fortes, e mais complexas, do que a simples filosofia dos idealistas. Pessimista, eu?
Admito que sim. E lamento que esse pessimismo não tenha comandado as tropas em 2001. De certeza que não estariamos assistindo agora à grande traição de 2021.
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